O Dia da Caça

                                         Compadre Lemos

( Para Elomar )

“...a gata prisunha, a cara de réu,
o pai do chiqueiro, a gata comeu.”


(Elomar Figueira Mello - in “Arrumação”)


***


Meia-noite, na Serra do Timbó. Noite de lua nova. Os escuros de breu.
O casebre, quase invisível na noite sem lua. Na boca da mata, só o silêncio e o calor sufocante das madrugadas de março. Tudo dorme. Ou, quase tudo.
Os passos macios da pintada, nas folhas secas de bananeira, espalhadas de propósito, à guisa de alarme. Os ouvidos experientes de João Pedro captaram, quase pressentiram.

-- Iscuitô, Manurréi?...
-- Rum rum!... É ela.
-- M’bóra?
-- M’bóra!...

Poucas palavras, pobre linguajar. Decisão e coragem, somente. Levantaram-se ao mesmo tempo dos catres, no quartinho escuro da tapera minúscula. João Pedro foi o primeiro a achar o fifó. Zemário riscou o fósforo. A luz amarela e tremulante se fez, iluminando dois rostos idênticos. Irmãos gêmeos, mabaços.

-- Aa tá chegano. Dimansin, pé de viludo, mais tá.
-- Que chegue. Só farta ela mêm. A hora dela já chegô.
-- Lovado seja Nossinhô Sunscristo!
-- Lovado seja!...

As mãos tocaram testas, peitos, ombros e bocas. Persignaram-se com o “Em-Nome-Do-Padre”, costume antigo do falecido pai, que herdaram.
Do quartinho pra sala, os dois, em silêncio. Da sala pequena, para a cozinha ainda menor. No fogãozinho de barro, a chaleira com o resto do café frio, de ontem de tarde.

-- Nun dá é móde isquentá. Ela sente o chêro e vorta, inriba do rasto.
-- Portança não. Café fri é café. Água é qui nun vira.
-- Falô certo, Manurréi. Qué cumê?
-- Mió não. Vomo cuidá dela premêro. Dispois, aí sim, a festa.
-- Antão, as ferramenta, mano. Sem barúi.
-- Tá qui.

No silêncio maior que se fez, armaram-se. Primeiro, os facões riscafôgo, antigos, forjados no Lajedão, beira de Urucuia. Depois, os embornais com munição de chumbo e pólvora. Por último, as espingardas.
A de João Pedro, uma Rossi 28, dois canos, limpa e brilhante, como se fosse nova. Ferramenta boa, de peso e respeito.

A de Zemário, herança do pai, uma chumbeira, feita em casa, cão grande, um cano só. Só não tinha o brilho cromado da outra, mas tinha história. Muitas e muitas pintadas viram, de sua boca, a última luz deste mundo. Merecia respeito e temor. Na coronha de jacarandá, o nome do fabricante e primeiro dono, entalhado a canivete: “Sebastião Dantas”.

-- Pronto, Manurréi?
-- M'bóra. sêo Mano!

A porta do casebre aberta em silêncio. As alpercatas de couro pisando de leve a poeira do terreiro, barulho nenhum. Os olhos atentos, fitos no escuro. Narinas sorvendo o ar, cuidadosamente, em busca do cheiro dela. Ouvidos vasculhando tudo, ao derredor, campeando bulido qualquer, que pista fosse.

-- Mano, ach qui é no curralin. E ocê?
-- Tomém. Móde o bizerro novo de Morena. Bicha covarda! Hoje, ela tem!
-- Antão, assunta: cê ispera um pôco aqui, que eu dô a vorta, passo no mandiocal e saio puditrais do curralin. Daí, cê chêga do ôto lado e nóis cerca ela. Tá dereito?
-- Iscrito, sêo Mano. Pu lad quela invisti, come fogo. Avia!...

Mais não se disse, não precisava. A experiência faria o resto. Pois não eram eles João Pedro e Zemário, filhos de Tião Dantas? Não tinham nascido e crescido aprendendo o ofício de matar onça, com o pai? Aquilo não era mais onça, era mais um couro, tirado, curtido e vendido caro, pra Zé de Mateus revender no Montes Claros. Só se Deus não quisesse!
João Pedro tomou o carreiro da esquerda, que saía da frente do casebre, atravessava o pasto de grama miúda e se perdia no mandiocal. Caminhando devagar, olhos e ouvidos atentos, pensava:

“Bicha mais covarda e mais besta! Garrá de tucaiá criação justamente adonde? No rãnch de João Pêdo mais Zemáro, dois caçadô de fama e prufissão! Nun sabe que nós dois véve é de vendê côro de pintada?... Antão, agora, aprende, mód largá de sê sambanga.”

Nos olhos, o ódio, a tristeza, a saudade. Ódio da pintada, que arrastara para a mata, na última lua nova, o bezerro recém nascido de Ametista. Tristeza quase de pai, quando perde filho, logo depois de nascer. Saudade do boi bonito que o bezerro poderia ter sido, não fosse a fome e a covardia da fedorenta.
Cuspiu de lado, com raiva, mas em silêncio, que a hora era aquela.

“Gata prisunha,
cara de réu,
ôje ocê tem,
cuma hai Deus no céu!”

Repetia baixo, tão baixo, que só o coração magoado escutava.

Fim do pasto, começo do mandiocal. Cuidado redobrado, para não fazer barulho na folhagem dos arbustos. Passo a passo, pé ante pé, deu a volta e divisou, por trás, o curral onde estariam, se Deus permitisse, o gado, para ser salvo e a onça, para ser morta.
Conferiu a espingarda: carregada, destravada, pronta. O dedo, no gatilho, esperando, qual serpente, a hora exata do bote, em que não pode haver erro.
Apurou os ouvidos e esperou. O sinal viria, estava certo. E ele o reconheceria, na fé de Deus.
No curral, no sítio todo, no mundo todo, silêncio absoluto. João Pedro esperou.

Zemário, por sua vez, dera tempo para que o irmão fizesse a volta pelo mandiocal. Apoiara a coronha da chumbeira no chão, feito escora, distribuindo melhor o peso do corpo. Atento - olhos, narinas e ouvidos -, lendo e interpretando imperceptíveis sinais. Esperava e pensava, que pensamento é coisa que ninguém sucede fazer parar:

“Eitha, que só farta êsse côro! Pelo tamanho do rasto, na ôta lua, é onça erada, das grande. É côro pa mais de dez conto. Cum o qui nóis já tem guardado na mão de Zé de Mateus, compreta o preço da moto-serra. Vô lá, eu mêm, compro e trago a bicha. Aí, vai sê a fartura, se Deus quisé. Boto a mata abaixo e vendo a madeira, dinhêro muito. Tamo rico, eu mais João Pêdo. Quano os home do Guvêrno subé da nutiça e vinhé, nóis já tá é longe, no Sumpaulo, cum dinhêro no bolso. Aí, vai sê só farra, só função, regada cum galinha, vin, quêjo e doce!... Ê vidão!... Acha nóis, que eu quero vê!”

Sonho antigo, de comprar uma moto-serra para derrubar a mata e vender a madeira, ficar rico de vez e sumir, ir para São Paulo, virar gente. Sonho muitas e muitas vezes discutido com o irmão, de pleno acordo.

-- Um dia, Manurréi, um dia!...

Na telhado da tapera, um curiango cantou seu canto triste, de mau agouro. Zemário sentiu, de repente, um frio esquisito, filho do susto, no cantar inesperado da ave noturna.

-- Cruz credo!... Sai pra lá, trem ruim. Eu vô é no curralin, que João Pêdo já deve de tê chegad lá.

“Deus me guia,
Deus me potrege,
de garra de onça
e da mão dos herege”.

Rezou três vezes e começou a caminhar cautelosamente, na direção combinada.

De onde estava, à beira da cerca, nos fundos do curral, João Pedro viu o irmão chegar, do outro lado. Viram-se, trocaram, entre si, um sinal de cabeça, a guisa de diálogo:

-- Nada?
-- Nada.

Esperaram, armas prontas, dedos no gatilho, um, de frente pro outro. Entre os dois, o minúsculo curral, feito para abrigar bezerros novos e vacas recém paridas. No ar, o cheiro forte da fera. Ela estava ali, em algum lugar, muito perto, esperando também. Eles sabiam. Era questão de tempo. Pouco tempo.
De repente, a percepção do silêncio total caiu como um raio, na mente dos dois irmãos. E a vaca Morena? E o bezerro novo? Onde estariam, que nada se ouvia? Teriam chegado tarde?
Movidos pelo mesmo pressentimento, como se fossem um só, saltaram a cerca ao mesmo tempo, cada um do seu lado, para dentro do curral. Não tinham as alpercatas de couro tocado o chão verde do lado de dentro, o urro da onça se fez ouvir. Urro de ódio, de raiva, de fazer gelar sangue e paralisar vítimas. O momento mágico e medonho do ataque!

Justamente para isso serve o urro da fera. Paralisa a vítima um segundo, tempo suficiente para o pulo e a patada fatal. Uma só, morte rápida e certa.
Mas não para João Pedro e Zemário, filhos de Tião Dantas. Urro de pintada era música para os dois, treinados e experientes. Ainda no ar, mergulhados na escuridão da lua nova, apontaram as armas e puxaram os gatilhos, ao mesmo tempo, mirando, por instinto, o ponto exato de onde tinha vindo o berro.
Dois tiros, um só estampido, tal a sincronia da ação.

Há quem diga, e eu acredito, que tem bicho que pensa e calcula, estando a onça em primeiro lugar, nessa arte. Agachada, tensa, feito mola prestes a se lançar, a Pintada esperou o salto dos caçadores, para dentro do curral. Saltaram.
Ela também saltou e soltou, no ar, o urro fatal, para atrair os tiros.
As cargas de chumbo grosso cruzaram–se a centímetros da cabeça da onça, mas não se perderam na escuridão. Encontraram, cada uma, o peito do atirador à frente, sempre ao mesmo tempo.
Com o impacto, cada um foi lançado de costas contra a cerca do curral, de boa madeira, que resistiu. E os corpos dos dois irmãos escorregaram para o chão, lentamente, mãos no peito, tentando, em vão, estancar o sangue e a vida, que se esvaíam depressa.

João Pedro ainda divisou, no escuro, o vulto grande, no meio do curral. Adivinhou serem a vaca Morena e o bezerro novo, mortos em completo silêncio pela onça, que só depois fizera barulho, para atrair os caçadores. Louvado seja...

Zemário deixou este mundo ouvindo o som longínquo de uma moto-serra, misturado a gargalhadas de festa e tinir de copos... Louvado seja...

Quem sumiu na escuridão foi a Pintada, que subiu lentamente a Serra do Timbó, para, lá de cima, soltar outro urro, mais forte, mais terrível, de pura felicidade.
No urro da fera, um grito de vitória. A vitória da Natureza que, embora estivesse perdendo, a passos largos, a guerra contra os homens, contra as máquinas, contra as armas, contra as químicas, nessa noite tinha ganho mais uma batalha.

Deus assim o quis. Louvado seja!...

***