Um conto de natal

Tudo começou esta manhã. As manhãs de domingo têm esse poder, elas parecem diferentes de todas as outras. Parecem mais frias, mais sonolentas, mais alegres. Estava sentado na varanda do segundo andar de minha residência, apreciando um bom café brasileiro e aproveitando a atmosfera preguiçosa para ler, talvez não prestando muita atenção ao que diziam as noticias. As mulheres da casa ainda não estavam acordadas. Sim, há duas mulheres na casa. Mas não atice suas chamas, leitor, são minha esposa e minha filha. Elas continuam dormindo. Têm o direito de dormir até um pouco mais tarde hoje, não? Eu não. Eu não consigo.

“O parque voltou à cidade”, me peguei falando em voz alta, olhando um anuncio de meia página nas noticias matinais. “talvez devêssemos passear por lá esta noite”, completei minha própria sentença para o vento, batendo silenciosamente a janela do quarto onde minha esposa guardava leito, talvez tenha sido ele quem me fez lembrar.

Lembrei de minha historia de vida no interior do estado, antes de vir morar pra cá, e ser abençoado por essa linda família que tenho. É, eu lembro. E com certeza, os moradores também devem lembrar. Há alguma coisa de extraordinária que acontecem em pequenas cidades do interior que algum dos moradores não consiga lembrar? É, eu acho que não. E eles passam de pai para filho acrescentado elementos de natureza sobrenatural, criando os mitos. E a minha era uma dessas, com certeza uma história que mais tarde se tornaria uma lenda.

Aconteceu também num domingo, eu lembro agora, mas era diferente de hoje. Era um domingo de sol, pelo menos uma manhã de sol quando tudo aconteceu. Eu ouvira muitas historias até então sobre jovens e crianças que tinham sido levadas a deixar tudo o que estavam fazendo, tudo em que estavam trabalhando e seguirem um canto, uma musica, de extraordinária beleza vindo diretamente da maré. Eu não tinha aversão a contos de fadas, nem a historias desse ou de qualquer tipo. Afinal, criado com as senhoras do interior, é quase impossível ser imune às crendices. Eu ajudei a alimentá-las.

Estava no inicio da adolescência quando brinquei com as forças com as quais nenhuma pessoa ousava brincar. Foi tudo preparado previamente, a velha canoa do meu falecido avô, um pequena mochila com algumas das minhas roupas e, principalmente o publico. Escolhi a hora do futebol, de manhã, logo após a missa matinal. Ensaiei um transe durante algum tempo em frente o espelho do banheiro e o repeti na praça, como se estivesse ouvindo tal canto.

Foi maravilhoso.

Todos olhavam assustados para mim enquanto caminhava na direção da água. Senhoras mais idosas se benzendo, as crianças totalmente assustadas. Lembro de uma ou duas que abriram um enorme berreiro enquanto eu entrava pela água. Eu era mais um naquela lenda. O resto não foi tão excitante assim, passei a maior parte do dia debaixo do escaldante sol tropical, até chegar a um trapiche de uma colônia próxima ao município de onde eu tinha saído. Fui até a estação rodoviária e comprei uma passagem para a cidade grande mais próxima. Eu contribuí para a vida que eu sempre gostei, as historias.

As cidades grandes precisam de algumas historias assim. Tal historia já completou seu vigésimo aniversário e desde o ocorrido eu nunca mais voltei até lá. Deus, se eu não voltei até hoje, eu nunca mais voltarei. Não sei como eu fiquei conhecido por lá, se como o garoto abduzido pelas águas, ou como o louco que se afogou, eu nunca encontrei nenhum morador que pudesse me contar.

Como eu sobrevivi na cidade depois disso é outra história, que eu não terei a oportunidade de contar.o fato é que agora muito bem casado, e com uma filha linda, eu ainda sinto falta das historias, eu quero novamente fazer parte delas. E, na manhã de hoje, eu percebi o quanto elas me fazem falta.

Nas cidades, elas são diferentes. Não envolvem seres encantados, seres mitológicos, velhas que concretizaram pactos com o demônio ou feiticeiras. Nas cidades, elas envolvem seqüestros, rins, loucura, incêndios, etc. É bem diferente, mas isso não detém o bom criador de historias. E eu me considero um.

Agora mesmo, enquanto escrevo estas linhas, estou olhando para minha filha. Linda. Quando criança eu jamais imaginei o tipo de amor que um pai sentiria por uma filha. E, até agora, é difícil expressar. Fomos muitos felizes. Ela olha pra mim, imóvel. Não é um olhar apaixonado. coitada, gritou tanto, mas eu sei que ela, que as duas me amam.

Minha esposa, meu outro motivo de felicidade, sempre foi muito carinhosa comigo, inclusive agora. Essa é a mulher pra vida toda, a que nos acompanha em tudo o que fazemos. Está de olhos fechados, mas eu vejo, mesmo assim, seu olhar apaixonado.

Seremos para sempre uma família feliz. Claro, nem só de momentos bons se faz uma família feliz. Minha filha, claro que será castigada. Castigada pelo seu olhar de ódio e medo para mim enquanto eu a esfaqueava. Castigada pelos gritos estridentes enquanto eu a crucificava na parede da sala. Pelas manchas de sangue que voaram sobre o peru, nossa ceia de natal. Mas, será castigada, sobretudo pelo olhar de censura que me lança agora, do alto da parede.

E quem eu penso que sou para castigá-la? Eu não consigo nem olhar pra ela com raiva no olhar, quanto mais castigá-la? Essa parte, a parte chata, é com a minha esposa. Essa doce e carinhosa esposa. Meu Deus, ela foi um anjo! Nem um grito enquanto o sangue de sua jugular (ou carótida, não estou certo, não sou medico), perfurada com a mesma faca que lhe permitira realizar aquelas maravilhas culinárias, escorria lentamente para o chão, percorrendo aquele corpo que me deu abrigo em muitas noites de frio. Fiquei maravilhado enquanto via seus olhos fechando lentamente para mim, quando a segurei nos braços.

Eu fiquei com a pior parte nisso tudo. Meu drinque terá algumas bolinhas de estriquinina, aquela dos venenos para ratos, que beberei enquanto nossa belíssima casa será perdida no incêndio. Mas não, isso não será agora, pois como eu já disse, o parque está na cidade. E eu, meu Deus, eu adoro o carrossel!

Solid
Enviado por Solid em 22/01/2006
Código do texto: T102105