UMA VISÃO ALÉM DA VIDA

Era terça feira, em uma tarde de outono e o sol escorregava lentamente em direção aos picos da serra, lugar em que sempre se escondia nessa época do ano. Alguns pássaros já voavam em direção ao cerrado donde costumavam pernoitar e alimentar os filhotes, que saídos dos ninhos, aguardavam ansiosos a última refeição do dia.

Alheio a tudo isso, Rafael subia lentamente a pequena ladeira que ia dar na casa em que se guardavam as tralhas e os aparatos de trabalhos da pequena fazenda da família. Com a chave da porta, o que Rafael buscava era uma bicicleta muito antiga que servia para o seu pai ir ao trabalho na Prefeitura da pequena cidade, na qual era fiscal de postura do Município. Rafael era ainda criança e não sabia montar em uma bicicleta, mas tinha vontade e muita curiosidade, como qualquer criança de onze anos de idade. O veículo estava trancado por uma corrente e um cadeado, cuja chave ficava na casa grande, em uma gaveta da mesa de quarto de seus pais e que sem sombra de dúvidas, ele já havia pegado para a execução de seu plano: aprender a conduzir essa geringonça sobre duas rosas.

Abrindo cuidadosamente a porta da “casa dispensa”, destrancando o cadeado e retirando a corrente que prendia a roda, Rafael suspirou de alivio, por ver que seu plano estava dando certo e que agora, pouco faltava, para experimentar a sensação do vento sobre o seu rosto, livre, leve e solto, como muitos adolescentes faziam, quando iam à cidade e alugavam uma bicicleta, para rodar por todas as ruas ou ainda, no pequeno campo de aviação, sobre uma pista de terra batida, na qual alguns pequenos monomotores (teco-tecos), se aventuravam, transportando alguns políticos, nascidos na região, mas que viviam na capital.

O menino sabia que seu pai chegaria bem mais tarde, pois havia ido a uma cidade do agreste, distante seis léguas e que ele sempre se atrasava, logo ainda teria umas três horas para tentar aprender a pedalar bicicleta, depois retornar e guarda-la no mesmo lugar, para que seu pai não desconfiasse e para que nada desse errado, porque ele sairia na quarta feira cedinho para o serviço de fiscalização da Prefeitura.

Retirou cautelosamente o novo brinquedo e pôs-se a empurrá-lo ladeira acima até atingir o pico da subida, ali começava uma estrada plana, que levava a uma cidade que distava cerca de uma légua do ponto final de quem subia e ponto inicial para quem ia descer a serra. Ao atingir esse ponto, muito cansado e ofegante, ele parou, suspirou fundo e com a sensação de quem vencia a primeira batalha, olhou por cima do nariz, por sobre os montes, empunhou a bicicleta e fez sua primeira tentativa em alçar carreira sobre duas rodas. Porém logo percebeu não ser tão fácil à façanha de andar sobre duas rodas. Nessa primeira tentativa, não conseguiu locomover-se dois metros do local de partida. Olhava na direção que queria ir, mas o guidom de controle direcional ia para outro lado e por algumas vezes o pneu dianteiro penetrava por entre as touceiras de agave (sisal), levando-o a um novo tombo. Muito suado e com alguns arranhões, entretanto, com grande vontade de atingir seu objetivo, em tempo algum se deu por vencido.

Como a um relógio, olhava sempre em direção ao sol, que determinava seu ponto de parada e retorno, para guardar o que agora achava ser seu mais novo brinquedo. Novas tentativas foram feitas e a cada uma delas, ganhava mais controle no aprendizado e começava a domar seu cavalo de ferro, porque o animal cavalo já o havia domesticado e o dominava como ninguém. Montava em seu dorso, no pelo ou selado, era assim que ia para a escola todos os dias pela manhã.

Havia se passado cerca de duas horas, pois o sol já escondia sua metade por trás do monte, sempre no mesmo lugar aonde se escondia de todos, dando lugar à noite e adeus à criançada, que o aguardavam com ansiedade para as novas brincadeiras do dia seguinte.

Rafael quase realizado com o seu aprendizado montou sobre a bicicleta e conseguiu traze-la até o inicio da descida, na cabeça da ladeira, foram cerca de quinhentos metros de aprendizado. Parou o veículo e com um olhar orgulhoso por seu feito, começou a descer o monte, segurando a bicicleta pelo guidom e apertando o freio, até alcançar a “casa dispensa”, onde a repôs no mesmo lugar, sem nenhuma alteração para que seu pai não viesse desconfiar de sua estripulia. Passou a corrente, pôs o cadeado, colocou a chave no bolso e alegre e fagueiro caminhou em direção a casa grande. Ao cruzar um riacho, parou no entorno da cacimba, lugar aonde a garotada se reunia sempre a boquinha da noite, para conversar; retirou os chinelos, lavou os pés e o rosto, conversou com alguns amigos que iam ao rio tomar banho, no famoso poço dos cavalos, uma área do rio Camará bastante arenosa e de boa profundidade. Era ali que se lavavam os cavalos após um dia de trabalho, por isso o nome. Rafael, porém, não gostava de freqüentar esse lugar pelo forte cheiro de vinhoto. Vinhoto este, que era despejado pelos engenhos que margeavam o leito do rio.

Despediu-se dos amigos e continuou sua caminhada para casa, seguiu a trilha que ia por entre o bananal, subiu um bom pedaço de lanceada, até chegar ao terreiro (área externa) da casa grande. Sua mãe o aguardava sentada em uma cadeira à varanda da frente. Esta lhe pergunta: onde esteve a tarde toda? Ele responde com palavras entrecortadas, que nada diziam e adentra pela porta da sala, indo até o quarto de seus pais para repor a chave do cadeado na gaveta, tal como havia retirado. Ao colocar a mão no bolso, tamanha foi à surpresa, a mesma não fora encontrada, surpresa maior foi ver que o bolso estava furado e que por certo a chave havia escapado pelo furo e caído em algum lugar.

Rafael ficou muito desolado, já estava escuro e por certo não a encontraria, pois já começava a escurecer. Como fazer? Seu pai sairia pela manhã cedinho para o trabalho e como lhe falar do acontecido? Ele havia feito algo sem a anuência do pai e não poderia adivinhar qual seria sua reação. Apesar da hora avançada, saiu à procura pelo mesmo caminho que voltou, mas estava muito escuro e não enxergava quase nada. Retornou para casa remoendo em pensamentos o acontecido e esperando o retorno do pai que não tardaria mais em chegar.

A um pedido da mãe foi banhar-se e nesse ínterim chegara seu pai da enfadonha viagem na labuta do dia-a-dia, pois havia ido comprar mercadorias para a bodega (armazém de secos e molhados); na cidade de costume. Após um ligeiro descanso de seu pai, o jantar fora posto à mesa, todos sentaram e puseram-se a servir. Falaram do seu dia, dos feitos e não feitos; apenas Rafael permanecera calado, embora fosse um dos que mais falava nessas oportunidades. Talvez pelo cansaço que envolvia o corpo de seu pai, este nada perguntou ao desolado menino.

Rafael dirigiu-se para o seu quarto enquanto seus irmãos brincavam até à hora em que sua mãe lhes recomendava ir dormir. O garoto tinha muita fé e sempre foi devoto da Virgem do Perpetuo Socorro. Em seus aposentos, orou muito diante da imagem da santa, pedindo para que ela lhe mostrasse em sonho, onde a chave havia caído, ele precisava encontrá-la para que seu pai pudesse ir trabalhar na manhã seguinte. E ainda para que ele não desconfiasse de seu feito e não perdesse a confiança que lhe havia depositado, pois era assim que dizia para os amigos sempre que conversava sobre seus filhos: “tenho muita confiança neste garoto”. Rafael prometera a si mesmo, que nada mais faria escondido e que não falaria a ninguém desse acontecido. Depois de muito conversar em frente da imagem da Virgem, o cansaço o venceu e este caiu por sobre a cama em um profundo sono, daqueles que costumamos dizer dos nossos filhos: “estão nos braços dos anjos”. E foi o que aconteceu com o garoto Rafael naquela noite de outono.

Ele sonhou como se acordado estivesse, com um belo e claro dia, a brisa soprando de manso sobre a ramagem dos cajueiros, e com intensa claridade, caminhava pela estrada, contemplava toda essa beleza como se estivesse ali ao vivo e a cores. Refez todo o caminho que havia percorrido no inicio da noite, até parar embaixo de um pé de cajueiro que ficava a margem da estrada, sob este, um lajedo de pedras porosas formando fendas e em uma delas, pode ver a chave caída e presa ao pequeno pedaço de barbante que a prendia. Olhou para a chave, olhou para a “casa de dispensa”, a uns vinte metros apenas da porta de entrada, olhou ao seu redor, como se para atestar que não havia ninguém a espreitar o seu ato de apanhar o objeto que tanto desejou não haver perdido. Ao inclinar-se para apanhar a chave, Rafael acordou, e pela fresta da janela obeservou uma tênue claridade do alvorecer e deduziu ser em torno de cinco horas da matina. Os galos carijós entoavam seus cantos matinais, sinalizando para o homem do campo que o dia vinha vindo e era convidativo a uma nova batalha. Ele não pensou duas vezes, levantou-se e com a certeza do acontecido, ainda vivo em sua mente de criança, caminhou sem perder tempo, sem procurar em outro lugar, porque tinha certeza de que o objeto perdido estaria no ponto indicado pelo sonho, se é que aquela visão foi um sonho. E com tamanha alegria, porém sem surpresa, lá estava à chave, no mesmo cantinho aonde a tinha visto durante sua visão; entre uma pedra e outra, embaixo do cajueiro, presa ao pequeno pedaço de barbante. Era inacreditável o que vivenciava Rafael nesse momento. Ninguém jamais encontraria uma chave tão pequena naquele local apenas por sua iniciativa de busca, se algo fenomenal como o sonho, não houvesse apontado para o devido lugar. Nada nem ninguém afastariam da mente dessa criança, o milagre que acabava de vivenciar. Somente a Virgem do Perpétuo Socorro poderia mostrar com tanta clareza o local onde aquela chave foi cair.

Rafael apressou-se em retornar para casa e colocar a chave no local de onde tirara. Esperou o momento em que seu pai estiva tomando seu café. E assim foi feito, sem que ninguém percebesse o ocorrido.

Tudo transcorreu como Rafael havia planejado, sem que ninguém se apercebesse de nada, seus pais, seus irmãos, assim como, sua tia, irmã de seu pai, que também morava com a família.

Ele carregou este segredo por toda sua infância, adolescência e uma boa parte de sua vida adulta. Somente trinta anos depois do ocorrido, quando já beirava os 42 anos de idade, foi que sentiu uma necessidade de falar o que ocorrera quando este tinha apenas onze anos de idade. Como nesta época residia longe de seus pais, então, aguardou a oportunidade de sair em férias e visitar sua família, para relatar o sonho que tivera naquela noite de outono, após as tentativas de aprendizado com a bicicleta, que servia para transportar seu pai até a prefeitura da cidade aonde ele trabalhava.

Naquela visita, Rafael se dispôs a falar todo o ocorrido. Ele também já era pai de dois lindos filhos, o mais velho com nove anos e o mais novo com seis anos e meio. Toda a família se encontrava sentada em frente à nova casa grande, que havia sido construída a bem pouco tempo e o patrocinador dessa construção, foi o próprio Rafael, como um presente para seus pais, pois sem dúvida lhes proporcionava um melhor conforto, mais espaço e, em um local de melhor acesso.

Rafael sentou-se em frente ao seu pai e começou sua narrativa, contando todo o episódio, deste o instante da retirada da bicicleta até o momento em que se levantou pela manhã, naquela quarta feira, após seu pedido a Virgem do Perpétuo Socorro e a visão que tivera. Seu pai ficara estarrecido com a narrativa de seu filho, e lhe falou: - isso só pode ter sido um milagre. Jamais alguém encontraria essa chave, mesmo que a procurasse com muito cuidado, era muito pequena e estava presa a um pequeno pedaço de barbante. A Virgem atendeu ao seu pedido filho e isso para mim configura-se milagre. Não compreendo por que só agora você se dispôs a contar? Rafael lhe responde com bastante cautela, que havia prometido para si mesmo não revelar para ninguém até que sentisse essa necessidade e se não sentisse, levaria consigo para a eternidade. Porém agora se sentia pronto para revelar essa verdade. A virgem do Perpétuo Socorro lhe havia proporcionado esta graça quando criança e que em muitas outras ocasiões lhe havia propiciado novas dádivas. Esta jamais deixaria de ser sua protetora e guia nos caminhos de sua vida.

Nessa ocasião consolidou a idéia de construir naquele local, uma pequena capela, em homenagem a Virgem do Perpétuo Socorro. Em outubro de 2002, uma imagem da Virgem vinda de Portugal com a qual Rafael foi presenteado, por amigos portugueses, que residiam na mesma cidade em que este morava. Esta será o símbolo de sua fé na pequena Capela a ser erguida.

Seus pais já não se encontram neste mundo, mas a idéia de execução da obra começa a se tornar realidade, como gratidão ao seu pedido em criança, nesse fato que o mesmo não consegue decifrar se fora um sonho, uma visão ou o mais notável milagre, desses que só na pureza de uma criança pode vir acontecer.

E assim, este verídico fato foi narrado por Rafael. Uma história vivida intensamente durante todos esses anos e que só poderia ser escrita, por quem vivenciou o milagre, dentre os grandes milagres da vida. Se formos, é porque existimos, se escrevemos é porque de certa forma vivenciamos o acaso. Que a paz da Virgem do Perpétuo Socorro, esteja sempre ao nosso alcance.

Rio, 28 de maio de 2008.

Feitosa dos Santos