Afasia

Há dias em que é simplesmente possível sentir o vento tocando a face, de forma serena e afável. Há dias em que se acorda com uma estranha sensação de possibilidade infinita. Há dias em que todos os matizes do pôr do sol levam a algum lugar. Há dias em que a vida parece interminável e bela; singela e doce. Ceio estar num desses dias.

Após um rápido desjejum no qual recompus as energias esvaídas com as viagens no fantástico e misterioso mundo de sonhos, caminhei a esmo entre o vazio do local onde se encontravam flores alaranjadas em um canteiro. A passos curtos percorri uma simplória distância que de forma amena transportou-me a um local parcamente iluminado, haja vista a veleidade do alvorecer. Em chegando ao local, desfiz-me da postura ereta, reclinando-me poucos graus para o norte, ao que completei a manobra flexionando minhas longas pernas e, quase concomitantemente, largando meu peso aos cuidados de uma grande pedra, à qual confiei a segurança de minhas nádegas. Tão logo me encontrava acomodado, adotando a clássica postura de Rhodes, quedei num adejar quase insano, vertiginosa era sua altura. Viajei léguas em frações por demais mínimas de tempo. Em verdade o pensamento conduzia-me ao bel prazer de suas imperscrutáveis intenções, as quais cismavam em galgar paragens a meus olhos desconexas e avulsas. Suscitável é a ignorância que certamente possuía. Mas certamente deve ser assim – o fardo é mais leve quando não se conhece seu peso.

Bom, o que se seguiu foi uma onírica paranóia, filha do ócio e irmã da tristeza, insistente como a mãe, a nobre saudade. É sábio alertar para o que vem na seqüência. O relato insano de um louco? A dor da solidão reclamando seu trono? Aventureis, pois, vossas ávidas mentes!

A saudade mata o homem. A saudade faz definhar a alma, torna decrépito o sorriso. A saudade adentra a alma sem aviso prévio ou consentimento. A saudade ressoa na mente como um eco infinito, que dura até o verdadeiro e confortante reencontro. É a pálida luz que ilumina as noites de insônia. O canto triste do vento uivando em uma fria noite de inverno. É a adaga que perfura o coração carente.

A viagem primeira levou-me a uma vila. Pequena, aconchegante e hospitaleira. Cheguei sem anunciar, porém mansamente como faz um educado hóspede. Acolheram-me mãos atenciosas, jeitosas no trato gestual. Tão habilidosas quanto os lábios da recepção, sempre preocupados em ostentar sorrisos. Não fosse a estranha sensação que arranhava meu peito, perceberia em um nunca o que estaria a operar.

As faces que pude vislumbrar, todas sempre tão receptivas, pareciam cicatrizes esquecidas. Uma semelhança enorme existia entre as páginas de minha memória e as faces que cismavam em chamar minha atenção. Permaneci por 3 dias e 4 noites, passados sem qualquer atividade relevante. A comunicação com a ínfima população beirava as raias da mudez – talvez por falta de empenho de alguma das partes. Mas, fato é que, em momento oportuno – que sinceramente não sei o porquê de sê-lo – decidi-me pela partida.

Meus pés levaram-me à porta sem que ordem alguma eu desse. Como não bastasse um simples adeus e alguns acenos de mão, pôs-se a vila inteira a se derramar em lágrimas, enquanto assistia a meu virar de costas e caminhar sem olhar para trás. Meus passos foram firmes, sem qualquer vacilo de vontade. Caminhei durante horas sem ao menos saber o rumo que seguia, ignorando completamente o destino que estaria a me aguardar. Quando então, não antes de muito caminhar, cedi ao cansaço, percebi-me novamente na vila deixada para trás.

Ao volver em direção à referida vila, percebi com peso enorme no estômago, nos átrios e nos ventrículos, que se tratava de minha verdadeira casa, meu lar primeiro, a cidade natal. Confesso que ensaiei uma queda, embora não a tenha concluído. Pude rever, então, todas aquelas faces que supunha eu desconhecidas. Por uma fração notória de segundo, quase desisti de meu intento: alcançar todos com um abraço redentor – mas suportei a vergonha que me forçava os ombros. Rastejante, após longos instantes, atingi o local onde se encontravam todos, e então eu os vi claramente. Familiares, amigos... Ainda incrédulo abri meus braços, choroso como uma alma que acaba de conhecer a Terra, deixando-me guiar pelos instintos afetivos. Em vão.

Subitamente acordei. De forma estranha minha cabeça jazia sobre meu punho. Este, por sua vez, apoiava-se com força tal sobre minha perna, que certamente já a havia marcado. Imagens mil e mirabolantes voejavam em minha mente que, embora conseguisse rememorar os acontecimentos do transe, não podia divisá-los da realidade. Novamente, então, pensei na saudade. Estranho, não?

Depois do que costumo chamar de momento ocioso-reflexivo minha mente começou a trabalhar em assunto de grande importância. Trazendo à tona algumas fugazes observações de meu singular cotidiano, presenteou-me com expressões variadas. Diversos rostos dançaram bem em frente a meus olhos, como que se estivessem à venda em uma vitrine. Enquanto deliciava-me com a atividade de observar aquelas feições extremamente distintas que giravam diante de mim, involuntariamente dei-me o luxo de abstrair novamente minha verdadeira essência, desta feita viajando novamente.

A rua está completamente preenchida. Todos os metros quadrados existentes fazem-se ocupados por um ser humano, cada um diferente. É como um grande deserto de corpos. Ando de forma desavisada, leve como alguém que acaba de ter uma ótima notícia. Mas não é o caso, afinal, não consigo lembrar o motivo que me fez chegar a esta condição – menos ainda o que me trouxe a este local. O que posso dizer é: a única coisa que me preocupa é se vai chover. Óbvio. Na verdade, não sei por que não pensei nisso antes.

Algumas coisas curiosas merecem ser relatadas. Vejamos... Por onde começar? Bem... Parece-me que sou o único que caminha na direção para a qual me dirijo. E que direção é essa?, você me pergunta... Por sorte não sou um mentiroso. Simplesmente não sei. Mas isso é importante? O que importa realmente? Passamos a vida inteira dando atenção às coisas erradas... Que pena!

Acabo de ombrear um homem de aproximadamente quarenta e sete anos, negro, que usa óculos de grau e uma chamativa combinação de branco. Ao lado dele creio ter visto uma bela garota ruiva, cabelos semi-curtos (ou seriam semi-longos?) quase lisos. Uma feição algo preocupada e talvez seus 30 anos. Confesso que não prestei atenção em suas vestes – coraria se dissesse que já a imaginei sem elas.

É como se faltassem alguns sons. Alguns não, muitos. Posso ouvir um burburinho, alguns passos, uma espécie de carrinho se arrastando metalicamente por um liso chão de... seria asfalto? Alguns bips fazem-se ouvir, bem como algumas vozes que parecem padronizadas: falam da mesma forma, a intervalos regulares de tempo, repetindo nomes e frases semelhantes. Ouço a respiração difícil de alguém. Nada mais, acredito.

Enquanto caminho lento como um pobre cão idoso, todos ao meu redor seguem em ritmo alucinante correria cotidiano coisas-para-fazer cidade grande.

Como que após um choque reencontro-me comigo sobre a mesma pedra. Talvez eu devesse simplesmente me levantar e cuidar de meus afazeres. Talvez todo esse ócio estivesse fazendo mal. Existiria uma overdose de ócio? Temo descobri-la em breve.

Já faz alguns minutos que não penso em nada, tentando pensar em algo produtivo. Dizem que o planejamento é a pedra fundamental do sucesso. Tudo bem, então. Encontro-me sentado em uma pedra e tenho muito tempo para planejar qualquer coisa que seja, pois, infelizmente, não me recordo de minhas tarefas. A parte boa é que tenho tempo de sobra. A parte ruim é que tenho tempo de sobra.

Quanto mais penso em algo, menos consigo concentrar-me no objeto de meu pensamento. As coisas estão acontecendo de forma amena, mas bastante estranha. Como agora, momento em que estou posicionado frente a uma mesa. Encontro-me sentado na cadeira que se encontra ladeada à direita por uma mulher, à esquerda por uma senhora; vejo-me encarando dois homens e uma moça que se senta do lado direito de um deles, mas relativamente longe do outro. As cadeiras pertencentes aos anfitriões encontram-se vazias. Estamos todos calados. O percuciente silêncio causa assomos de arrepio. Não há nada para ser dito, tampouco há vontade ou necessidade de tal feito. Assim sendo, sem sentir qualquer força impelindo-me à socialização, procuro apenas passar o tempo. Observar os olhos pode ser perigoso. Existe um quê de mistério nessa empreitada. Nunca se sabe onde é possível chegar. Alguns sábios diziam que toda estrada nova nasce como um beco sem saída. Averigüemos.

Pus-me a mergulhar em cada um dos olhos que se encontravam ao alcance dos meus. Talvez por mero instinto masculino tenha começado pela moça que se encontra acomodada do lado contrário ao meu. Singulares olhos, posso dizer. A julgar pela pequena gama de cores armazenadas em meu cérebro, diria que são de um tom castanho. Muito claro, que se lembre. Duas piscinas de aveia. Terminado o momento inicial de reconhecimento de cores, acabei quedando em reflexões mais profundas. Contrariando todas as expectativas que anos e anos de fé na crença popular me renderam, aqueles belos olhos de aveia não se deixavam decifrar. Nutrindo a esperança de vislumbrar a alma daquele belo e feminino ser que se encontrava diante de mim, procurei entender seus olhos. Em vão. Os pequenos flocos de aveia que dormitavam petrificados diante de mim não possuíam qualquer característica de algo vivente. A verdade é que os olhos eram tão mortos quanto qualquer cadáver jamais visto.

Rapidamente, um tanto quanto atordoado, busquei socorro nos olhos dos homens que compunham o trio que se encontrava no lado oposto ao meu. Pensando em um possível surto insano temporário, corri a fitar os olhos dos dois homens. Sem prestar qualquer atenção a cores, apenas tentei achar vida naqueles orbes. Para minha desgraça ambos os pares eram expressivos – cada qual à sua maneira, é verdade. Enquanto o homem que se encontrava na cadeira do meio era dono de um olhar gentil e tranqüilo, o outro detinha um severo olhar de confiança, incrementado por um leve toque de desdém. Céus! Minhas pernas moviam-se freneticamente e minhas unhas cravavam-se com força pavorosa sobre as maçãs de minha face. Como seria possível? Estando os olhos mortos daquela forma, certamente a pobre alma não mais fazia-nos companhia!

Instantes antes de um fim trágico, convenientemente, despertei. Sofrera uma queda, embora não sentisse dores. Encontrara-me estirado no chão coberto de folhas, como um bêbado. Por franca preguiça, sequer dei a meu corpo o trabalho de erguer-se. Tanto melhor, pois era capaz de ouvir vozes sussurrando docemente; carregadas pelo vento daquela forma, assemelhavam-se a agouros das ninfas do mal. Deitado como estava, sem vontade alguma de procurar algum esconderijo, permaneci, aguardando a hora da ceifa. Como deve estar a imaginar: fatalmente adormeci.

Um rosto angelical paira diante de minhas retinas. Um rosto maravilhoso, perfeito. Ao irradiar aura límpida qual cristal, a face encara-me. Suas feições são de absoluta bondade; sinto jorrarem raios luminosos das belas narinas, quando de seu movimento de expiração. A face é tão meiga, tão suave... Faz-me recordar o perfume de rosas. Faz-me sentir o afago do amor. Sinto conhecê-la; contudo, não sei seu nome, não sei de onde vem, não me lembro de nada. Tocado pelas carícias plangentes que emanam do olhar da dríade dos sonhos, quedo, em paz, nos braços do infinito.

No quarto fortemente iluminado pelos raios solares da atípica manhã de setembro a enfermeira ruiva conversa com os pais do rapaz que se encontra deitado na cama. Enquanto isso, Paulo, médico, negro, óculos, próximo dos quarenta e sete anos, adentra a sala. Subitamente, aos prantos, Ísis, recém-viúva, deixa a cabeça cair sobre o peito de Rubens. Posicionados em uma mesa existente no quarto, os lírios alaranjados dormem.

Rafael Fontana
Enviado por Rafael Fontana em 13/07/2008
Código do texto: T1078107
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