sobre um pequeno cão

O cão, diziam, perdeu-se caindo de um caminhão de mudança. Outros sujeitos esquecíveis comentavam que a verdade era que tinha sido abandonado por ninguém mais sentir alegria por ele, porque era muito feio, porque era muito desobediente, agressivo, sarnento... Esse cão, um pequeno cão russo de três palmos de comprimento e dois palmos de altura, orelhas pequenas e eretas, foi atropelado duas vezes nas rodovias por onde perambulava: uma vez devido ao simples desejo de encontrar mais sombras do outro lado da estrada numa tarde sufocante de sol (cinamomos frondosos com ar de esperança) e a outra quando avistou restos de carne de pássaro estendida no asfalto. Recuperou-se nas duas vezes sem a ajuda de ninguém e por muito tempo lutou contra as moscas varejeiras e as inoculadoras de bernes, que queriam se aproveitar das feridas de seu corpo para infestá-lo de larvas. E isso seria o fim. Aprendeu então a temer os automóveis, e a usar melhor os seus sentidos.

Depois de abandonado e perdido o cão emagreceu quarenta por cento do seu peso no espaço de duas semanas. Era mais ossos do que cão. Tentou retornar ao seu lar e falhou, então depois só lhe restou tentar sobreviver entre as pessoas na cidade onde fora abandonado. Comeu ratos mortos e vivos e comeu insetos e fezes de qualquer procedência no desespero da fome. E um dia, atraído pelos urubus que avistou no céu, que, com pouca força, conseguiam adejar o espaço sem fim, deixou a cidade como quem se solta das farpas de um arame, e sempre com o olhar para o alto, admirado, aturdido, rosnando, latindo e uivando, tentando decifrar aquele grande mistério que fazia impulsionar os urubus e o fazia se sentir pequenino como as formigas em que pisava e em desvantagem como todos os seres que rastejam. Se valia a pena ser alguma coisa, essa coisa seria um urubu.

Aprendeu rapidamente; as necessidades prementes aguçam dotes a muito esquecidos; aprendeu a dar caça às rolinhas, aptidão que os gatos da cidade passaram a ser insuperáveis , os quais o pequeno cão observara por algum tempo, e adquiriu predileção pelos filhotes caídos dos ninhos. Andando na estrada, entretanto, não lhe faltava esse tipo de carne, tendo em vista a tendência suicida das rolinhas, denunciada reiteradas vezes por seu comportamento indiferente, estáticas e imbecis na rota dos carros. Elas não conseguiam aprender, ou não queriam, então era só esperar e logo tinha uma carcaça ou até várias, e se não tinham passado primeiro aos olhos dos carcarás e caramujeiros, eram boas as chances de uma refeição, coisa, aliás, sempre bem vinda para quem a fome não tirava suas garras.

Não gostava de frutas; quase morreu de cólicas depois de ter devorado um abacate, essa fruta providencial aos famintos da estrada.

Uma noite inteira sofreu insuportável dor nas pernas depois de ser atingido por não-sei-o-quê, e conseguiu abrigo às margens da estrada sob as ramagens empoeiradas de um forquilheiro aprisionado pelos cipós de são joão floridos e empoeirados. Dormiu o que pôde e depois de várias horas acordou sob o desabar de uma chuva de outubro e percebeu que ventava, e ventava tanto que as árvores caíam próximas a ele como se cedessem passagem a algum animal fabuloso e o no céu faiscavam relâmpagos. Teve medo. Medo e fome, e nunca se sentiu tão só e sonhou que era rei de uma matilha de cães parecidos a ele, mas que tinha a invejável capacidade de adejar o espaço como os urubus de sua sorte. Acordou uivando por um impulso irreprimível na sua garganta e também se assustou com isso, e como ainda não sabia que estava mesmo no chão, tropeçou duas vezes nas próprias pernas como os cães que confinam certos parasitas no cérebro.

Encontrou-se vezes sem conta com outros cães e na maior parte das vezes teve que correr como um possesso porque o desvio de caráter dos cães abandonados é o mais visível dentre todas as espécies; esse estado gera animais canibais, tarados e sádicos ou simplesmente molestadores compulsivos diante dos quais tudo na vida é ameaça, e vai lá saber que tipo de experiências tiveram para que se comportem dessa maneira. Às vezes, juntavam-se em sua sordidez e cercavam um cão solitário, ou um gato, ou qualquer ser indefeso, e, bem, tem coisa que é melhor não contar.

Quem pudesse ver o pequeno cão logo de imediato veria os seus olhos, lugar do corpo onde o pânico parece estar mais enraizado e trai logo toda a condição de um ser. Recusou-se a se agregar a outros cães e fazia o que podia para se afastar das pessoas. Uma súbita bondade sempre vinha acompanhada de um chute certeiro. Pobre cão.

Então um dia é tolerado por um velho andarilho que até conversa com ele e tem um tom de voz amistoso mesmo quando bebe aguardente. Mas o cão mantém sempre uma estudada distância, pois sabe como é volúvel o comportamento desses homens extraviados do convívio com os seus comuns. Jamais apela o que quer que seja ao homem, mas sempre sobra algo para comer e faz o seu trabalho de cão de guarda toda vez que um perigo se anuncia, visível ou invisível, apesar da incompreensão do homem. Ao lado desse homem consegue sentir certa segurança e começa a andar mais altivo e arrogante, late para tudo e para todos, pois é um cão que tem dono, e isto na vida de um cão é uma espécie de deslumbrada ascensão social.

Mas como a alegria na vida de alguns seres é tão fugaz como a palavra “amém”, em uma ocasião, então, a farpa de um osso lhe entra nas gengivas, e toda vez que tenta morder, a mandíbula age como um martelo em um cinzel, e o enlouquece de dor: não quer comer, vive ganindo, e é preciso remover esse espinho. Não há outro recurso para o homem além de imobilizá-lo a força, com o joelho prendendo o pescoço e dar um puxão resoluto, o que provoca uma dor lancinante e familiar, e um surpreendente sangramento que o faz o cão temeroso por sua vida. Mas o cão não entende esse gesto de caridade, e nada sabe desse comportamento humano que as outras espécies relutam, e agora decide partir na primeira oportunidade.

Abandonou-o no mês de frio em que os homens despejam fogos no céu, depois que conquistara a simpatia de dois cães estropiados como ele, que tinham mais ou menos a sua estatura, todos machos e perdidos e encurralados nas trincheiras do desprezo do mundo. Parece que o homem o procurou por um tempo, entrando nas moitas e assoviando, mas desistiu de encontrá-lo porque o seu caminho tinha que continuar tão ou mais estropiado como o caminho do cão, ou até mesmo sem a mísera esperança de um cão.

Nas matilhas com fêmeas não teria vez. Não que fosse incapaz. A violência e o cheiro de sangue começavam a repugná-lo, e isso não era coisa de cachorro. Já tinha percebido a sua sombra e andava assombrado com essa companhia pegajosa. Era impossível agora ficar sozinho.

Em uma noite de lua cheia, lua que parecia um prato branco e vazio, foram atacados por uma animal estupendo, que os farejara à distância enganado pelo odor dos ratos do campo que estava impregnado no pêlo deles. Esse ser, pouco audacioso fora do seu mundo, tímido com tudo que não fosse uma presa, tinha um focinho comprido e máscara negra ao redor dos olhos; pêlo baio e sedoso parecendo um cachorro esguio e espantado por uma existência incógnita e fugidia. O animal percebeu o engano, mas a fome que o possuía não o enganava. Avançou sobre os cachorros, mas um pouco indeciso, e os cães já tinham acordado. Latidos, uivos e rosnados despertaram todos os animais daquele ermo num raio de dois quilômetros. Por fim, não houve ferimentos e o animal desapareceu em meio a um capinzal alto. Os cães guardaram esse susto por vários dias, e diante de uma ameaça, verdadeira ou não, primeiro se atiravam latindo e tentando morder o que quer que fosse, só depois se davam o direito de compreender a razão do alarme.

Indolentes e festivos e fustigados pelo instinto de sobrevivência, dividiam às mordidas o que encontravam. Mas o cão russo tinha algo que não suspeitavam o que fosse, era um olhar para o alto, um ouvido mais atento, uma nostalgia irrefreável que fazia os seus olhos arderem. No princípio tiveram desconfiança, depois raiva, e um pouco depois indiferença porque não era um cão ganancioso, na maioria das vezes sabia desistir de uma presa se pressentisse que iria se machucar. Houve então uma época que o alimento rareou (as rolinhas migraram para o norte, assim como os tizius e as coleirinhas), lamberam as patas atraídos pelo odor de antigas carnes, e lamberam tanto que a língua fendeu a sua própria derme e então se separaram, um com medo do outro, menos o cão russo, que ficou olhando os companheiros partirem sem olharem para trás. E no cheiro das manhãs somente a fome.

Agora não sentia tristeza por estar sozinho.

Caminhoneiros assam churrasco. Um cruzamento, uma greve. Cheiro de bebida no ar, risos grotescos, murmurações indecorosas. Os grãos de soja espalhados no asfalto como contas de uma fé perdida. A soja não brotar no acostamento das estradas é uma coisa intrigante, ali deve haver um tipo de terra peculiar, sem descanso, não só revolvida pelos vivos, mas também pelos mortos. Não tem tempo para apodrecer. O farelo que deixa o ar asfixiante é levado para longe para alimentar os porcos; não serve para matar a fome dos cães. Mas o cheiro de carne é indefectível, as glândulas salivares... Ah, as glândulas salivares de um cão... Preso à fome, que o sustém numa coleira curta e sufocante, é levado sem protestos a saciá-la.

O cão tem um golpe de astúcia, crê. Não pode intuir a armadilha posta na mesa: suculenta carne de gado liberando o soro aromático que desperta o furor de suas vísceras. Ali esta ele, boca e dentes e a sua descomunal e torturante fome, e está a dor, a surdez e o ar do mundo sendo-lhe negado. A dor, dilacerante no princípio, cedendo espaço a visões surpreendentes, cachorros voadores sem asas...

Então ele não soube que se arrastou como um lagarto pesado por uns cem metros com o quarto traseiro dilacerado por uma carga de calibre doze. Ouviu gargalhadas, não conseguiu erguer a cabeça e se afastar mais; a dor, entrementes, foi-lhe arrancada. Sentiu um súbito arranque no corpo, algo que lhe deixou o coração leve. A morte o alcançou nas alturas e nas garras de um carcará faminto que fazia mais de uma hora que por ali espreitava; e antes disso, o cão pôde então ver a terra do alto, como os urubus: era bela com relâmpagos no horizonte e uma extensa praia verde cortada por uma cicatriz vermelha em forma de verme onde se movimentavam estranhos seres. E viu como o mundo que percorrera era estranhamente pequeno, mal cabia numa de suas pequenas patas; e sendo tão pequeno, admirou-se de ali caber tanta dor, tanta ofensa... Mas nesse ponto já não era mais cão, não era mais nada.

luiz silva
Enviado por luiz silva em 23/07/2008
Código do texto: T1093535
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