Jogos Mortais

Lá está ele, sentado na calçada da Oscar Freire, olhando as madames fazerem compras, desfilando em seus saltos-altos. É quando uma dessas madames pisa em cima dele. Isso é muito comum. Já estava acostumado. Os superiores não olham para o chão, só olham para o alto. Nivelam tudo por cima. Mas para sua surpresa...

-Me desculpe - diz a madame, carregando um monte de sacolas de grifes famosas, uma mulher alta, magra, loura, uma quimera de tão linda.

-Imagina, a culpa foi minha.

-Você está sangrando?

O salto fino havia rasgado a calça e perfurado a carne da perna dele.

-Não se preocupe. Não foi nada - ele diz, levantando-se com a mão na perna, tentando estancar o sangramento, pois aquela loura parada conversando com um mendigo começava a chamar a atenção dos seguranças das lojas.

-Espere!- ela diz - Vou levá-lo ao hospital.

-Olha, dona. Não precisa. Estou bem.

-Não, a culpa foi minha. Você está machucado. Não posso deixá-lo sangrando assim.

-Olha, dona. Eu não quero confusão. Eu já pedi desculpa.

A madame faz um sinal e um negro enorme, uniformizado, sai de dentro de um carro importado. Ele pensa em fugir, ele o mendigo, mas com a perna machucada não conseguiria correr. O homem o agarra e o coloca dentro do carro.

-Nos leve ao hospital, Manfredo. Rápido - ordena a madame ao seu motorista.

Chegam ao hospital e são logo atendidos, nada de fila, gente caindo nos corredores, tudo limpo, branco e silencioso. O mendigo é levado pelos médicos e em poucos minutos já está bem. A madame vai vê-lo no quarto.

-Tudo bem com você?

-Estou bem.

-Qual o seu nome?

-Paulo.

-Paulo? Bonito nome.

-A madame não precisava se incomodar.

-Pode me chamar de Renata.

Paulo não é um mendigo, ele não trabalha, isso é verdade, vive numa casa velha na periferia e é sustentado pela mãe, uma senhora doente que recebe pensão do governo. Paulo é um homem com mais de trinta e cinco anos, nunca casara, nunca tivera filhos, se acha um artista, por isso não trabalha e gosta de perambular pelas ruas mais ricas de São Paulo, inspirando-se na ociosidade dos opulentos.

Renata vai até a casa de Paulo, conhece a mãe dele, conhece a arte de Paulo. Ela não entende muito de arte, mas gosta do painel que Paulo está pintando com as mãos. Renata é jovem, rica e bonita. Casou-se com um empresário rico que morreu e deixou uma fortuna para ela. Não tinha família, por isso se sentia muito sozinha naquela mansão.

Paulo e Renata passam a se encontrar com mais freqüência. Um visita a casa do outro. Um invade o outro. Um come o outro. Na primeira vez que vão para cama, Paulo vai até a casa de Renata e ela está na piscina. Ele nunca tinha vista as pernas nuas de Renata. Sempre recatada, vestido longo e calças de linho. Paulo sente uma corrente elétrica percorrer pelo seu corpo.

-Venha. A água está uma delicia - diz Renata dentro da água.

-Desculpe, não trouxe roupa para nadar.

-Imagina, pode nadar de cueca mesmo, eu não ligo.

Paulo, incomodado diz que vai embora, que volta outra hora. Na verdade, Renata sempre o deixa nervoso, não sabe como se portar diante dela. Mas ao mesmo tempo ela o atrai como um imã.

Renata sai da água e o impede de ir embora.

-Qual o problema, Paulo?

-Acho melhor eu ir embora. Acho melhor agente não se ver mais.

-Por que?

-Agente é muito diferente.

Renata o encara por uns instantes. Lentamente retira o seu maiô e fica nua na frente dele.

-Sem minhas roupas, sem minhas jóias, Paulo. Eu sou igual a você.

Renata o beija. Paulo a carrega no colo e a leva para dentro da casa.

Meses depois, Paulo e Renata se casam. Renata leva a mãe de Paulo para viver com eles na mansão. Agora ela tinha uma família. Passam a lua de mel na Europa. Visitam os melhores museus do mundo. Conhecem o Royal Academy of Arts. Paulo tem a oportunidade de ver o trabalho dos melhores pintores.

Quando voltam ao Brasil, Paulo começa a pintar, inspirado pelos grandes mestres. Renata monta um ateliê para ele num dos quartos da enorme mansão. Paulo passa, praticamente, o dia inteiro pintando.

Empolgados, Renata aluga um espaço cultural e prepara uma vernissagem para expor os quadros de Paulo. Uma pequena festividade, reservada para convidados escolhidos e para a imprensa. Uma noite glamurosa, regada a boa bebida e gente bonita. Paulo se sente confiante ao lado de Renata, sua linda esposa.

Mas as críticas aos seus quadros não são animadoras. Um jornalista chegou a descrever uma de suas telas como uma “bela porcaria”.

Paulo deixa de pintar, deixa de sair de casa, de perambular pelas ruas, algo de que gostava, sua mãe também passa a reclamar mais dele, diz que as empregadas a maltrata, que quer voltar para sua casa, Renata mal pára em casa, sai de manhã e só volta a noite.

Na verdade, isso tudo não era novidade, sempre fora assim, desde que casara, mas na época estava tão empolgado em pintar que não percebera a ausência de Renata, as reclamações de sua mãe, e que a sua felicidade era uma farsa. Ser triste não tendo nada é ruim, mas ser triste tendo tudo, é pior ainda.

Paulo decide acordar cedo para tomar café com sua esposa.

-Meu bem, onde você vai todos os dias tão cedo?

-Vou a ginástica.

-E a tarde?

-Esteticista. Estou fazendo um tratamento de pele. É um tratamento lento que demora algumas semana.

-E a noite?

-Aula de espanhol. Por que todas essas perguntas?

-Nada. Só queria ficar um pouco mais com você.

-Oh, meu amor - Renata dá um beijo em Paulo -Então fica combinado, nesse final de semana agente vai para Angra e tiramos o dia só para nós dois. Nossa! Estou encima da hora.

Paulo a acompanha até o carro.

-Tchau, amor - diz Renata, entrando no carro, Manfredo fecha a porta do carro e partem em direção ao portão.

Será que ela está fodendo com esse negão? pensa Paulo, será que ela está me traindo?

Paulo passa o dia em casa, tenta conhecer melhor os empregados. Desde que casara não conhecia todos os empregados da casa. Tenta puxar papo com o senhor que limpa a piscina, mas ele se esquiva. As empregadas também mal responde suas perguntas. Ariscas. Assustadas.

- Não sei de nada, não senhor.

Paulo decide seguir Renata. De manhã, ginástica. Paulo chega a entrar na academia para espiar Renata fazendo exercícios. Sou mesmo um idiota, pensa Paulo. Mas antes de voltar para casa, na hora do almoço, a segue até um restaurante vegetariano num shopping. Bingo. Renata se encontra com um homem. Um sujeito esquisito de paletó escuro.

-Eu não agüento mais está situação. Me desculpe. Eu sei que você está me pagando muito bem. Mas já faz mais de um ano que estou nessa. Às vezes não sei mais quem eu sou. Não sei mais o que é mentira o que é verdade. Quando me pagam para sair com um cliente, é uma noite, um dia no máximo. Mas isso, um ano. Um ano para trepar com um cara. Não dá, agente começa a pirar. Preciso voltar a minha vida normal, mesmo que eu venha a ganhar menos. Quero minha vida de volta. Ele já está começando a desconfiar de mim. Eu não sei do que ele é capaz se descobrir o que estamos fazendo. Pra você é fácil. Não é você que mora com ele, que dorme com ele. Eu sei que você cedeu a sua casa, os seus empregados e que está pagando uma grana preta. Mas pra mim não dá mais. Já chega. Acho que já deu, né? Já atingiu o seu objetivo.

-Eu é que decido se está bom ou se está ruim e como deve terminar. Paulo é criação minha e você é apenas um instrumento dessa criação.

-É exatamente isso o que eu estou tentando lhe dizer. Eu sou apenas um instrumento. Você pode me substituir a hora que quiser. Eu não sou tão importante assim para o seu jogo. Por favor, me deixa sair. Estou com medo. Estou com medo do Paulo.

-Ele está te seguindo.

-O quê?!

-Não olhe agora, mas ele está do lado de fora nos espiando.

-Meu Deus do céu. Ele acha que estou traindo ele. Agora que eu não volto para casa, nem fodendo. Eu sei do que é capaz um marido traído. Você não está entendendo. Ele pode me bater. Ou pior, ele pode me matar.

-Interessante...

-O que?!

-Se ele se transformar num assassino, esta história ficará muito mais interessante. De mendigo a rico. De rico a assassino. Um novo limiar.

-Você está brincando, né?

-Volta para casa. Diga que sou seu pai. Que você não falou nada porque tem vergonha de mim. Que sou viciado em jogo e que te procurei para pedir dinheiro emprestado. E quanto ao seu pedido, eu vou atendê-lo. Desde que você faça o seu serviço direitinho.

-Mas quando?

-Apenas alguns dias. Confia em mim. Vai acabar antes mesmo que você imagina.

Assim que Renata foi embora o meu celular começou a tocar. Era o meu editor. Não é fácil a vida de escritor. Atendi.

-Me dê mais uma semana para entregar o livro. Tive uma grande idéia para o capítulo final.

F Mendes
Enviado por F Mendes em 03/08/2008
Reeditado em 14/09/2008
Código do texto: T1110317
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