Farfalla Da Infância

As tantas lembranças que minha infância me traz são tão significativas e tão impossíveis, que por vezes, penso tê-las sonhado.

Como quando tive meu primeiro contato com o mundo de poesia que eu trazia no peito e nunca havia me dado conta, nunca entendi. Porque as crianças não sabem o que carregam na alma. Trazem a poesia para fora sem sequer saberem que, de fato, as são. E espontaneamente vão enchendo a vida das pessoas de cores.

Devo concordar com os que dizem que nossas habilidades e talentos se manifestam na infância, e que depois de muitos anos vem à tona.

Tenho diversas doces lembranças, mas há uma que me acena muitas vezes, e me faz escalar esses muros sem temer os possíveis abismos do passado.

Houve uma tarde que talvez tenha definido o que eu seria para sempre. Um momento que deixou todas as evidências de que eu seria essa ostra que tem sempre de ser garimpada e aberta com cuidado para que seus tesouros poucos se dêem a conhecer. Que eu seria posta num jardim interno de muros muito elevados.

Trazia no rosto as marcas do sol na bochecha, afinal passara aquela tarde quente me banhando numa piscininha no quintal de casa, e eu nunca me cansava. Era tirada de lá a força e com os dedos já envelhecidos.

Mal sabia que as delícias daquela tarde seriam tão pavorosas.

Depois do banho forçado, da janta forçada e do meu cansaço todo, deitei no colo de meu pai esperando que um carinho suave me fizesse adormecer.

Começara então meu terror.

Ouvi um barulho pavoroso que parecia estar ali, dentro da minha cabeça. Daí parou. Então eu me levantei e ouvi novamente. Gritei estridentemente, abrindo de súbito os olhos quase serrados de meu pai.E quando eu mexia a cabeça parecia estar lá dentro um bicho enorme e assustador.Chorei muito e expliquei a meu pai que havia uma borboleta no meu ouvido, e que ela estava entrando cada vez mais e pedi que a tirasse de lá, certa de que ele poderia fazer isso.Senti muito medo. Até que meu pai colocou minha cabeça em seu colo e disse que era só esperar que ela saísse, que eu não precisava temer. Ainda apavorada fiquei quietinha, chorando e esperando. E ela parou de voar lá dentro, eu já não ouvia mais nada, mas continuei imóvel com medo de acordá-la. Fiquei ali durante muito tempo sentindo um misto de pavor e alívio. De repente ouvi um pequeno estampido e senti escorrer um líquido quente do meu ouvido . Me perguntava várias vezes onde tivera ido a borboleta que estava lá dentro. Não ouvi nunca mais o barulho de suas asinhas batendo, mas sabia que ela não havia saído de lá.

Sempre acreditei que uma borboleta morava dentro de mim. Eu sentia.

Hoje em dia entendo porque meu pai não contrariou minha afirmação de que uma borboleta havia entrado em meu ouvido. Na verdade, graças a essa atitude eu me tornei guardadora delas. E sei que não apenas uma, mas tantas outras me povoam muitas vezes e trazem para fora um pouco do aroma fresco desse jardim que tenho no peito. Por isso tantas vezes eu me fecho, para que elas não saiam voando e carreguem nas asas a criança que um dia eu fui.

Tenho medo de ficar vazia, sem infância e sem borboletas dentro de mim.

Talita Fernanda Sereia
Enviado por Talita Fernanda Sereia em 05/08/2008
Reeditado em 09/08/2008
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