Honrará pai e mãe
 
Enquanto o padre proferia o sermão, D. Carminha, curvada no genuflexório, com um terço nas mãos, concentrada, franzia o cenho. O sermão pesava sobre seus ombros, as palavras do sacerdote faziam-na murchar.

D. Carminha não comungou naquela manhã, o que era raríssimo. Em toda sua vida, só deixou de receber o corpo de Cristo em uma ocasião: quando era menina – tinha lá seus treze anos – e o padre não tivera tempo de ouvir sua confissão. Como já era muito religiosa à época, e também orgulhosa, recusou-se, por isso, a receber a hóstia. No fim da missa na qual não comungou, ostentou sua austeridade e sentiu-se em perfeita comunhão com o Senhor.

Às amigas que lhe perguntavam por que não tinha ido ao encontro do pão da vida, ela respondia, estóica, que não era digna, que seu caráter não lhe permitiria receber o Cristo, sem antes libertar-se das máculas de seus pecados. (Quanto aos pecados da menina, cumpre ressaltar que ela se não os tinha, inventava, e contava com gravidade aquilo que sabia pequeno; suscitava dúvida sobre suas ações e respondia com uma culpa maior que a consciência. Mas tudo isso só um narrador mais cismado que onisciente pôde perceber na menina. E um dos grandes males do leitor é crer no narrador em terceira pessoa como em deus). A menina Carminha regozijava cada vez que explicava o porquê da sua recusa. Mas desde então, ela nunca mais deixou de comungar.

Contudo, desta vez, quando o padre encerrou seus ofícios, antes mesmo de acabar de dizer a eterna frase final: “que o Senhor vos acompanhe”, Carminha já se levantava e saía da igreja; tinha pressa, fugia mesmo. Não queria voltar à sua casa caminhando com suas velhas amigas como costumava fazer.

Naquele dia voltou sozinha da igreja; seguiu por um caminho diferente, e divisando de longe um ônibus que ia para a zona sul, fez-lhe sinal, entrou e seguiu viagem até chegar à rua da praia. Ao ver a areia e o mar, d. Carminha desceu, e andou um pouco pelo calçadão; depois, sentou-se num banco de frente para o oceano. Ali ficou um bom tempo, admirando o dia claro e sentindo o sol brando lhe tocando a pele. Enquanto olhava a superfície azul do mar, viu brotar uma gaivota, que emergiu da água e voou, afastando-se do mar. Neste momento, Carminha sentiu em sua face o vento que ave sentia na dela: aquela gaivota, que sozinha cortava o céu, era a liberdade.

D. Carminha era viúva. Casou-se aos 17 anos com o Dr. Cardoso e teve um casal de filhos: Paulo e Joana. Seu marido morrera há 20 anos; seus filhos haviam se casado e moravam longe: a filha, em São Paulo e o filho, em Recife. D. Carminha vivia só em um apartamento situado no subúrbio do Rio. Sua vida era ir à igreja, cuidar da casa, reunir-se com as amigas; raramente, viajava para a cidade de Cabo Frio, onde morava sua mãe, d. Maria da Conceição, que, apesar da idade avançada - 93 anos -, ainda morava sozinha.

No domingo anterior, d. Carminha recebeu uma ligação do hospital municipal de Cabo Frio, pela qual lhe informaram que sua mãe estava internada lá, pois havia caído e fraturado o fêmur. A notícia surpreendeu a filha, que não planejava ir a Cabo Frio tão cedo; tinha ido lá havia 4 meses e esperava voltar só no fim do ano.

Na verdade, d. Carminha visitava pouco a mãe. Quando suas amigas lhe perguntavam por que não trazia a mãe para morar com ela, Carminha respondia que a velhinha era muito forte, independente e, sobretudo, amava o lugar onde morava, pois vivera em Cabo Frio toda a vida; falava, ainda, que d. Maria da Conceição não queria vir morar no Rio de jeito nenhum.

As amigas rebatiam, diziam que era arriscado deixar que sua mãe - naquela idade - ficasse só, sem parentes por perto; contavam, ainda, para tentar convencê-la, tristes casos de idosos que faleciam sozinhos e somente quando o cheiro denunciava a morte aos vizinhos é que se descobria o cadáver abandonado na solidão.

D. Carminha falava-lhes que isso não aconteceria, pois telefonava sempre para sua mãe. "Não abandono a mamãe, apenas respeito a vontade dela, que é permanecer em Cabo Frio", dizia. Todavia d. Conceição já havia manifestado o desejo de morar com a filha, no Rio. Carminha é que se esquivava da obrigação, não por maldade – ela não era má -, mas para preservar sua liberdade, sua rotina. Quando instada pelas colegas a trazer ao Rio a velha mãe, respondia-lhes que nada aconteceria a sua mãe; e, ainda que ocorresse alguma fatalidade, ela certamente seria a primeira a saber.

Agora, no entanto, havia acontecido. Recebera a ligação no domingo, mas, passada uma semana, ela ainda não havia ido para Cabo Frio; e também não havia contado a nenhuma amiga sobre acidente. Desde que soube, não falou mais da mãe: ia a missa e saía sozinha, evitava as amigas e as conversas; mantinha-se distante de qualquer assunto que pudesse lhe lembrar a mãe e, conseqüentemente, a tragédia.

Era quinta-feira, fazia dias que recebera a notícia da mãe. Não dormiu naquela noite. Parou de rezar. Antes, d. Carminha rezava, pelo menos cinco vezes ao dia: ao acordar, antes do almoço, no meio da tarde, na missa das 19h e antes de dormir; agora, ela sequer olhava a bíblia. Na última vez que leu o livro sagrado, resolveu abri-lo ao acaso e a página aberta foi a dos dez mandamentos; ela os leu, fechou a bíblia e a guardou numa gaveta, longe de seus olhos; o suporte em que o livro ficava, na sala, feito de madeira trabalhada, ficou vazio, como nunca havia ficado.

De manhã sua filha lhe ligou e, durante a conversa, perguntou sobre a avó, como sempre fazia. D. Carminha respirou fundo e disse que havia falado com a avó fazia poucos dias e que ela estava bem. A neta falou ainda que telefonou para d. Conceição na terça, mas ninguém atendeu ao telefone. A mãe desconversou, dizendo-lhe que a avó não teria escutado o toque do telefone, pois devia estar na varanda.

Na sexta-feira, ligaram de novo do hospital onde a velha d. Conceição estava internada:
- Alô?
- Boa tarde.
- Poderia falar com a Srª Carminha, por favor?
- Sou eu.
- Aqui é a Ângela do hospital de Cabo Frio. Estou ligando para lhe avisar que sua mãe teve alta ontem; pode vir buscá-la.
- Infelizmente, não poderei ir, pois estou muito doente. Vocês não podem levá-la para casa?
- Levá-la, podemos; o problema é que ela não pode ficar sozinha; ela precisa de cuidados. Se a senhora não puder vir, ela permanecerá no hospital.
- Como ela está?
- Bem. Reclama de dores e diz ter saudades de casa.
- Ela voltará a andar?
- Talvez; a recuperação nessa idade é complicada. O que a senhora tem?
- Eu?... Eu tenho febre, dor de cabeça e tonturas. Muita febre. Não sei ao certo do que padeço, ainda não fui ao médico – não tive forças...
- Pois devia ir logo; com doença não se brinca, não sabe?
- Sei, sei, eu vou. Pode me fazer um favor?
- Sim, fale.
- Diga a minha mãe, por favor, que estou doente, mas que assim que puder irei buscá-la.
- Pode deixar. Não se preocupe.
- Obrigada.
- De nada.

E despediram-se.

No dia seguinte, d. Carminha passou o dia inteiro em casa. Não atendeu ao telefone, que bateu algumas vezes; assistiu à televisão, somente. Não comeu quase nada. No domingo também não saiu. O telefone tocou muitas vezes, mas ela o ignorou. Às 19h, soou a campainha, mas Carminha não se levantou do sofá; depois de insistirem mais quatro ou cinco vezes pararam.

Na segunda-feira, ela foi até o quarto dos fundos, pegou a escada de alumínio e a abriu na sala; em seguida, subiu até o último degrau e pulou.

Na quinta-feira, D. Carminha telefonou ao Hospital Municipal de Cabo Frio. Identificou-se e perguntou pela mãe. A enfermeira que atendeu ao telefone era a mesma que havia falado com ela da última vez. Perguntou, portanto, a d. Carminha:
- A senhora melhorou?
- Você não vai acreditar...
- O que houve? - perguntou, surpresa, a enfermeira.
- Sabe aquela tontura que eu estava sentindo? Você não vai acreditar! Ocorreu-me uma infeliz coincidência: caí e quebrei meu fêmur. Não poderei buscar a mamãe tão cedo.