O Aborto

Passei duas semanas vigiando a moça. Estudado os seus passos. Aprendendo a sua rotina. O segredo desse negócio é evitar surpresas. Prever as jogadas antes de acontecerem, como um enxadrista russo. O nome da moça era Gilete, vinte e um anos, trabalhava num salão de beleza, próximo a sua casa na periferia. Entrava todos os dias as nove da manhã e não tinha horário certo para sair. Nos finais de semana se arrumava toda para ir aos bailes funkes, onde encontrava suas vítimas.

- A vadia está grávida - disse o meu cliente, no nosso primeiro encontro. Ele estava acompanhado do seu empresário. Estávamos num restaurante japonês no centro da cidade. Chovia muito lá fora.

- Paga o que ela quer e fim de papo - eu disse.

Não gostei daquele sujeito, mas gostar das pessoas que contratam os meus serviços não faz parte do negócio.

- Encurtando o história, doutor, é o seguinte. Estou metido numa treta ferrada ai, com uns amigos de infância - ele pegou um lenço da mesa e limpou o suor da testa, hesitante.

Como a maioria dos jogadores de futebol, Todinho, nasceu e cresceu na periferia, cercado de marginais.

- Se você vai contratar os meus serviços, preciso do máximo de informação possível para te ajudar - eu disse.

Todinho olhou para o seu empresário que meneou a cabeça positivamente.

- Lavagem de dinheiro do tráfico. Agora o doutor está me entendendo? Se a justiça vasculhar a minha vida financeira por causa dessa maldita pensão, estou fodido. Eu não posso nem dar um tiro na cabeça daquela vadia. Eu já jurei ela de morte. Ela fez um B.O. contra mim e tudo. Se ela morrer agora e a policia me investigar, estou ferrado. Preciso ficar o máximo possível longe de qualquer problema nesse momento. Ela precisa tirar a criança, doutor. É a única maneira. Por isso me indicaram o doutor para esse serviço.

- Quem me indicou?

- Ele - Todinho apontou para o seu empresário.

- Bem... na verdade, foram uns amigos de Brasília. Sabe como é esse negócio... não posso citar nomes. Mas... disseram que esse tipo de coisa só o... doutor é capaz de fazer.

- Tira essa criança pra mim, doutor - implorou Todinho.

Fazem besteiras e depois correm fazer abortos.

Gilete já estava no terceiro mês de gravidez. Deixou de trabalhar e passava a maior parte do dia em casa. Só saia para ir as consultas médicas, pertinentes a uma parturiente. Apesar de ser pobre e não ter carro, Gilete ia às suas consultas sempre de taxi. Soube depois que era o meu cliente quem pagava as consultas e o taxi. Se ela pegasse ônibus o meu trabalho seria mais fácil. Não é difícil derrubar uma mulher grávida de uma escada de ônibus. Com o tombo certamente ela perderia a criança e tudo seria creditado como um acidente.

Mas Gilete nunca saia de casa desacompanhada. Ela sempre tinha como companhia uma vizinha, que também trabalhava no salão de beleza do bairro, jovem magra, não era bonita, mas tinha o cabelo bem tratado.

O taxi parou no portão da casa e as duas entraram no carro, despreocupadas.

No final de semana fui ao baile funk que ocorria, pelo menos duas vezes ao mês, num clube do bairro.

Mulheres com roupas minúsculas, apertadas e sensuais. Homens de trajes despojados e boné na cabeça. Dentro do salão um calor dos diabos. Pessoas suadas, encostando umas nas outras. Créu! Créu! Créu! Até o chão! Até o chão! Procurei um lugar estratégico, próximo a entrada do banheiro feminino. Mulheres adoram banheiros. Porque é lá que estão os espelhos. Não demorou muito, avistei quem eu procurava. Ela vestia uma minissaia branca e um top rosa, deixando a barriga e as pernas, bem torneadas, a mostra. Abordei-a no meio do salão.

- Tão jovem. Tão cheia de promessas...

- O que disse?

É, eu ia ter que simplificar.

- Gostei das suas pernas.

- Eu te conheço?

- Prazer, Edivaldo. E você, como se chama?

- Maria.

- Eu queria aprender a dançar essa música.

- É fácil. Eu te ensino.

Ela se virou de costa e começou a esfregar a sua bunda no meu quadril. Créu! Créu! Créu! Até o chão! Até o chão!

Depois desse dia, Maria e eu começamos a namorar. Eu disse a ela que vim do norte a procura de emprego e que no momento estava num trabalho temporário e logo ficaria desempregado novamente.

- Você não tem cara de nordestino - disse Maria.

- É o que todos dizem.

- Eu sei como é. Eu também vim do norte. Tocantins. Com meus primos e minha tia. Meus primos se casaram e estão trabalhando em outras cidades e minha tia voltou pro norte. Eu quis ficar.

Maria morava sozinha. Todo dia eu ia até a casa dela. A levava para comer lanche na lanchonete do bairro. Depois fodíamos a noite inteira. De manhã eu ia embora, deixava-a no salão de beleza com o discurso de procurar emprego.

Uma semana depois, Maria me apresentou a sua melhor amiga Gilete. As duas eram vizinhas. Era uma questão de tempo.

A tarde Todinho me ligou no celular.

- Então, doutor? Quando vai terminar o serviço? Eu não agüento mais aquela maluca da Gilete me mandando exames de ressonância, exames de não-sei-o-que. Roupinhas de nene. Já faz um mês que contratei o doutor e nada. Logo a criança vai nascer e o negócio vai melar.

Eu disse a ele que não se preocupasse, que ele continuasse a jogar a bolinha dele.

Sou um assassino profissional. Não mato velho e nem criança.

Cheguei na Maria e disse que iria voltar pro norte, que o meu dinheiro estava acabando e que não iria mais arriscar a minha sorte. Ela tentou me fazer mudar de idéia, me convencer a ficar, disse que me amava, que não queria mais ficar sozinha. Mas eu já havia me decidido.

Maria me abraçou forte.

- Não faça isso, meu anjo - eu disse.

- Você está chorando?

Gilete apareceu de surpresa, disse que não tinha energia elétrica em sua casa, que precisava tomar banho para ir ao médico.

Eu e Maria já estávamos nos despedindo na calçada, quando ouvimos um forte estouro e um grito assustador.

Entramos correndo na casa. Maria bateu desesperada na porta do banheiro, mas Gilete não respondia. Tive que arrombar a porta. Quando entramos, o cenário: chuveiro chamuscado, forte cheiro de fio queimado, Gilete nua estendida no piso, a água caindo gélida sobre o seu corpo imóvel.

Maria entrou em parafusos. Chorava. Gemia. Desliguei o chuveiro. Gilete estava sem pulso. Puta merda. Comecei a fazer os primeiros socorros. Enquanto tentava ressuscita-la, mandei Maria ligar para o hospital. O resgate não demorou a chegar. Eu e Maria acompanhamos Gilete na ambulância.

Tive que aguardar, na sala de espera, mais de uma hora. Afinal surgiu o médico. Disse que Gilete estava bem. Mas infelizmente perdera a criança.

Como eu disse, não mato velho e nem criança. Mas como médicos que fazem aborto, sou um profissional.

Na noite anterior, quando eu disse à Maria que iria embora, tudo já estava arquitetado em minha mente.

- O serviço vai ser feito amanhã - eu disse pro Todinho no celular - Passo ai no final da tarde para pegar a outra parte do dinheiro.

Eu sabia as datas e os horários das consultas de Gilete.

Bem cedo apareci na casa da Maria, com o pretexto de me despedir. Desliguei o disjuntor de energia da casa da Gilete. As duas casas eram contíguas, não tive trabalho nenhum.

Maria me abraçou forte.

- Não faça isso, meu anjo - eu disse.

- Você está chorando?

- Caiu alguma coisa no meu olho. Posso usar o banheiro?

Levei apenas um minuto para prepara o chuveiro. Logo que sai do banheiro, Gilete apareceu. O resto vocês já sabem.

F Mendes
Enviado por F Mendes em 06/09/2008
Reeditado em 07/09/2008
Código do texto: T1164839
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