A Cidade dos Mortos

A cidade dos mortos

Nós éramos o caos no pleno silêncio, sabíamos que havia algo de fato errado e que estávamos a mercê de algo mais englobador do que acreditávamos.

Era um dia qualquer onde vazios vasos perambulavam às ruas com suas cores fortes, sua porcelana frágil e seu interior oco. Pela primeira vez os vi assombrados. Nós éramos sete, éramos sete aberrações perdidas dentro daquele deserto de concreto e mata. Tudo era vazio, poucos de nós ainda não.

A cidade era um vasto cemitério de idéias, nós as tínhamos, mas elas eram fogo sobre palha e sobre ferro. A destruição era o veiculo para a criação, mas nunca usávamos do falado vandalismo tão pregado pelos povos de gesso, não enquanto éramos vivos. Com o tempo a cidade morta nos rogava mais forte sua chuva extenuante, nossos encontros eram reduzidos e transformados em brigas e tempestades, a arte era trocada pela farra e os vícios falavam mais alto. Assim morríamos como "Ela" queria.

Numa noite de inverno onde ainda me encontrava com tais pessoas pude me ver consumindo em fúria e fulgor, sentia já nos lábios e nos dedos o gosto da humanidade viva e do sangue quente, mas infelizmente o que recebi foi poeira e fibra inorgânica. A fibra se parte e rasga a pele, é fria, dura, vazia... A pele é quente, complexa, vasta, langue... Não parte, mas rasga, e é altamente infectavel.Aquele susto me foi deveras grande, ter em mente tudo aquilo me era de fato escandalizador, então começaram as vozes.

Veio-me o primeiro fantasma e talvez o único qual eu tenha dado razão alguma vez.

- Essas coisas quais andam contigo não lhe são apropriadas. Dizia assim luzindo à óleo e madeira o rosto daquele que me falava. Ela era lívida como um cadáver, e mecânica como máquina, afinal como todos nesta cidade eram apenas uma parte dum grande corpo morto.

Eu me ofendia com leveza diante estes comentários persistentes do espéctro, mas os engolia absorvendo o pó venenoso do tédio. Eram os vicios que não me abandonavam que mantinham-me acesa, era a vontade tola e cega de viver que abalava aquela fúnebre sociedade. Eu os via como gado morto em açougue, apenas à espera de alguém que os comprassem e consumissem. Eram todos uma massa reles e vã, reclamavam do tédio, mas deleitavam-se com ele dentro de suas casas, por detrás da porta todos eles tinham medo, e isso era o que nós causávamos, espanto.

Devido tamanha ameaça eles começaram a interferir em nosso mundinho utópico. Nós queríamos mais, e assim o seriamos, éramos tudo o que o vício e a música nos permitia. Mas ainda sim, éramos massa.

Dois tinham na mente inovações, entretanto novos cegos se agrupavam a nosso redor, corrompiam o nosso fulgor. Eram pessoas artificiais e traziam consigo seus próprios vicios e deuses. Eles nos aniquilavam, e para sobreviver tinha-se de morrer. Assim eu o fiz.

Podeis perceber vós, que lêem, o quão pouco falo de mim separadamente, pois de fato o meu Eu sozinho e solitário tal como sempre foi não me é interessante, nem a vós importante, o que de fato importa é o asco que corre nas entranhas daqueles que têm mente fechada, e o que nós aos fantasmas provocavamos.

Desde que nossa união foi formada, bebíamos, fumávamos e nos divertiamos, porém mantínhamos no limite do razoavel nossas responsabilidades. Criavamos quando podíamos, destruíamos quando precisávamos, aos poucos dávamos vida à essa cidade morta através do asco e do pavor. Os mortos se levantaram de suas tumbas e se rebelaram, outros, escravos, aplaudiam. Nós éramos heróis sem convicção.

Mas como havia dito antes, dos mortos veio o reforço, queriam nos abolir e assim o fizeram. Viciaram meus companheiros, ludibriaram com promessas falsas os mais tolos e de alma fraca, enterraram os mais imponentes, disseminaram seu vírus, e apagaram as chamas dos mais valentes. Ela possuía muitos meios de nos consumir e nós nos deixamos abater. Seus fiéis habitantes pelas calçadas nos flagelavam, nossa fuga era nula e nossas opções precárias. Então com o tempo a distância e o medo foram atuando, o vício nas novas drogas consumindo, as pessoas recentes, futilizando, e antes de nos tornarmos nossos próprios destruidores... Eu morri. Mas morri para poder ver o fim e a fuga. Morri, para ir-me com orgulho. Eu tinha de sair vivo desta cidade de zumbis e mortos-vivos. O único jeito seria me anular. Assim aos poucos fui sumindo com a consciência suicida de quem se mata, minha voz seria nula e minha péle gélida. Todos foram morrendo e arrastando mais gente para o cemitério, devoravam cérebros, roiam ossos, vestiam marcas.

Eles existiam para progredir com a morte, eu morria para prosseguir com a vida. Éramos todos acorrentados ao tédio e à chuva fina e triste que paira sobre essa cidade. Morreríamos em vida para viver na morte. Era assim que nós pensávamos, ou era pelo menos como achava eu tal. Todos foram mortos e transformados em efêmeros zumbis. Eu também quase, e admito que por pouco não me tornei tal criatura, entretanto, ainda há fogo na alma de poeta e enquanto este houver para minha solidão ao menos há escapatória.

“Em memória à todos que tentaram dar vida e assim foram julgados e executados pelas mãos vis e tediosas dessa cidade. Abaixo ao tédio!"

- Por enquanto é só...

R Duccini
Enviado por R Duccini em 21/09/2008
Reeditado em 29/03/2009
Código do texto: T1188741