A MORTE O ESQUECEU

Hoje completo 159 anos. Acho que o vento do tempo passou por mim despercebido. Já não sei se é privilegio ou condenação a viver tanto. Devo ser o humano mais velho do planeta. Digo isso, porque nunca revelei minha idade real para ninguém. E não me interesso em casos de longevidade. Tenho horror a ficar em evidência. Ficar famoso por ser muito velho não me apraz. As pessoas ficariam me olhando como se eu fosse um museu ambulante. “Olha, lá vai um homem com quase 160 anos”. Isso me incomodaria. Aceito a minha idade naturalmente, essa realidade não posso mudar. E ninguém precisa se preocupar com isso. Cada um que viva o seu tempo ou seus tempos.

Três esposas passaram por mim. Todas já falecidas. A primeira morreu em plena juventude. Morreu ela e a criança que esperava. Morte de parto. As outras duas viveram um bom tempo. Depois disso, nunca firmei compromisso com mais ninguém, apenas algumas aventuras para satisfazer o desejo. Resolvi ficar só. Opção minha. Pretendentes não me faltaram. Tive apenas dois filhos, tirando o que morreu junto a minha primeira esposa. Os dois partiram desta vida há tempo. Netos, idem. Bisnetos e outros se os tenho, não sei por onde andam. Morei em muitos lugares por este País afora.

Das minhas três mulheres, a primeira foi a que mais me marcou, apesar do pouco tempo de matrimônio. Talvez tenha sido por causa do curto período e a morte do meu primeiro filho. O fato é que a sua beleza, o seu carisma e os seus lábios rosados nunca os esqueci, com todo respeito a outras duas que foram grandes companheiras também.

E pensar que na virada do século 19 para o século 20 eu já era um cinqüentão. Quase cento e oito anos já se passaram. Esta foi a melhor época em que vivi. Muitos amigos-irmãos, que saudade! Varávamos a noite em conversas intermináveis pelos bares da vida. Todos já viajaram há muito. Mas os tenho nitidamente em minha memória. Depois vieram outras boas gerações, mas essa foi inolvidável.

Sempre gostei muito de ler, leio até hoje. Bem menos, é claro. A boa leitura sempre me ajudou a interpretar com mais lucidez esta complexa raça humana. Lembro-me de quando o nosso grande mestre Machado de Assim, especialista da alma, morreu em 1908. Penso que ele morreu de tristeza, pela perda de sua esposa Carolina Augusta em 1904. Por esta época, tive a oportunidade de ler Memórias Póstumas de Braz Cubas. Fiquei muito impressionado com a leitura deste livro. Achava estranho um defunto narrador, mas depois entendi o porquê.

Atualmente estou lendo um livro de poemas de um jovem autor, que, aliás, de muita percepção estética e de visão ampla dos conflitos humanos. Há homens que envelhecem tornando-se cegos ainda jovens. Por outro lado, há jovens querendo não só ver, mas enxergar as pegadas do dia-a-dia.

Meia-noite. Meu aniversário já se passou. Meu segundo dia a caminho de mais um ano de vida. O que me resta é ir para minha cama, fechar os olhos e dormir. E com os primeiros raios solares sei que abrirei novamente os meus olhos. Disso não tenho dúvidas.

De morrer, já perdi as esperanças.

Marcos Arrébola
Enviado por Marcos Arrébola em 07/10/2008
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