Luz no fim da estrada

Las Palmas,

ou

Estrada de Palmas,

ou

O lago,

ou

Passos,

ou

Imortalidade,

ou

Luz no fim da estrada,

ou

Andarilho

(Carro em alta velocidade. Motor barulhento. Carro antigo – uma lata velha. Estrada coberta com o velho asfalto. Vegetação à beira, viva, muito viva, selvagem, querendo o tapete negro de asfalto invadir. É só deixar e as plantas selvagens dominam o mundo.)

O homem solitário fala, em seu pensamento, ao seu coração:

[Abram-se enormes aspas e imprima-se um travessão, para tudo o que o homem vier a dizer, com o seu pensamento ao seu coração.]

Qualquer estrada estreita é via para as maiores viagens da vida.

(Dirigindo em alta velocidade)

A barragem está próxima. O que encontrarei no fundo daquele lago? E se o carro não afundar tão rápido: rápido o suficiente para que eu não tente me desvencilhar do cinto, abrir a porta e sair nadando?

Quem se importará com um carro velho no fundo de um lago, tripulado por um ex-homem, um tolo fracassado?

Mas... e quanto ao meu projeto de imortalidade??? Aquela bobagem toda de fazer filho, escrever livro e plantar árvore... Essa mesma bobagem na qual acredito veemente, com todas as minhas forças vitais e faculdades de intelecto... Acreditar em bobagens é viver plenamente: é por isso que devo respeitar os religiosos. Ser bobo é gozar de liberdades. Meu cadáver no fundo de um lago esquecido neste fim de mundo me tornaria mais imortal que meus textos nesses blogs idiotas para os quais escrevo? Filho eu já fiz. Árvore eu já plantei – só não vi crescer –, mas livro... Um livro meu, só meu, de papel, de papel bom, com capa boa... Ah, só mesmo os eletrônicos, disponíveis nesses sites que a gente não sabe se alguém, de fato, lê, ou se apenas acessa e lê as primeiras quatro linhas. Machado de Assis é imortal. Mas ninguém lembra do poeta da praça com seus livrinhos de xerox. Eu sou um poeta de livrinhos de xerox. Isso me torna mais mortal que Machado de Assis. Eu preciso ser mais imortal que meu pai. Existem pessoas mais ou menos imortais. Meu cansaço, agora percebo, não me deixa ver mais imortalidade no fundo de um lago que num blog. O que é que eu estou fazendo?!?

Vou parar. Pronto. A chave desligada é a faca amolada a romper a corda na espera do cadafalso. A chave não desliga só o carro. Ela me desliga. O cessar do barulho do motor é como o fim de uma tempestade.

(O homem solitário desce do carro e inicia sua caminhada pela estrada deserta, ora sinuosa, ora reta.)

Como vim parar aqui?

É tudo tão estranho. Só sei que há poucos minutos eu queria me jogar com o carro no lago que está daqui a alguns quilômetros. Mas essa vontade acabou. Não foi a gasolina. Foi a vontade que acabou. Mas... por que motivo? E por que motivo cheguei aqui? Me lembro agora de um filme de suspense em que o cara ao despertar do sono vê que está preso em um quarto sujo sem saber o motivo que o levou ali. E eu estou aqui. Preso entre o céu e a terra – este céu que me desprotege e me esmaga contra o chão – sem saber o motivo. Engraçado como essa estrada, que deveria ser um símbolo de liberdade, mais me parece um papel de parede. Este céu. Este mato. Esses bichinhos... Não é como um quarto sujo, mas não deixa de ser uma prisão. Uma bela prisão, é claro. A prisão que me libertou de uma outra prisão bem pior: o fundo do lago.

Ah! Lá está ela. A barragem e o lago.

(O homem contempla com emoção o lago. Pára, de pé frente a ele. Grita. Atira pedrinhas no lago. Senta-se na grama. Acende um baseado – ou outro tipo de cigarro artesanal, vá saber. Parece um baseado. Depois de um tempo sentado ali na grama, volta a caminhar – agora descalço. Bainha da calça dobrada. Em sua mente alguns flashes: ora uma boca sensual de mulher; ora seios de mulher; ora uma vulva com muitos pêlos, ora uma mão de mulher com unhas vermelhas escrevendo uma carta.)

Eu vou andar até não agüentar mais. Talvez o cansaço me traga a verdade. TALVEZ O CANSAÇO ME TRAGA A VERDADE.

A vida é uma estrada desconhecida.

(O telefone toca. O homem, na cama, no quarto escuro, acorda. Atende o telefonema. Uma voz de mulher do outro lado da linha diz: me perdoa?)

***