O rinoceronte na loja de cristais

Ali tudo transpirava delicadeza: as prateleiras de vidro translúcidas, sustentando taças leves como o ar, feitas do mais puro cristal. Cintilantes, elas como que tiniam ao mero refletir da luz. A mesma luz que, ao trespassar a barreira quase inexistente dos vidros sem espessura visível, se desdobrava em cores e se transmutava em alegrias breves. Até um suspiro mais forte parecia ameaçar a integridade daquelas preciosidades, que milagrosamente se sustentavam em pés delgados, igualmente transparentes. Lapidadas umas, lisas outras, as taças se equilibravam em seus próprios reflexos.

E foi então que ele entrou, esbaforido e atabalhoado, correndo sobre seus pés chatos e balançando a cabeça de nariz proeminente; sua dura casca, áspera e opaca, resvalava nas prateleiras. O deslocamento do ar que sua passagem causou foi o suficiente para desestabilizar o equilíbrio e a harmonia dos vidros, e eles foram caindo todos, um a um, estilhaçando-se ao chão numa sinfonia de gritos agudos. Seu corpanzil rígido nem se abalou com os minúsculos cacos brilhantes que formavam sobre ele uma chuva de estrelas...

Ela acordou sobressaltada, com os ruídos ainda ardendo aflitivamente em seus ouvidos. Outra vez o sonho dos contrastes. Sabia o significado, sabia que tipo de mensagem seu inconsciente lhe passava com insistência. Mas, como sempre, perdoava o rinoceronte. Era um animal, um ser instintivo; se corria, é porque algo o ameaçava. E se houvesse à sua frente uma árvore centenária, um riacho de águas barrentas ou uma loja de cristais, tanto faria - ele atropelaria qualquer obstáculo para salvar sua grossa pele.

Voltou a dormir.

As bonecas de porcelana sorriam fracamente com aquelas pequenas bocas carmim, pintadas com delicadeza sobre suas peles pálidas de brilho baço. Foi quando ele entrou urrando, fazendo o chão tremer e movendo a grande tromba em todas as direções...