O zagueiro descalço

A turma trabalhou duro durante três tardes, mas agora tinha um campinho de futebol. No final do dia, mal dava tempo de jogar os livros em cima da cama, tirar a roupa do colégio e correr para lá. Os times eram sempre os mesmos: Felipe, Bernardo, Carlos, Augusto e Lucas, em um; Betão, Luís, Mateus, Eduardo e Davi, no outro.

Todos moravam na vila e se conheciam desde pequenos. Os pais já tinham sido amigos de infância, parecia uma família enorme, motivo que não impedia birras, xingações e algumas brigas.

O Betão que apareceu com a novidade:

- Gente, vai ter um campeonato no outro fim de semana. E o prêmio é uma bola de couro e medalhas.

A turma toda ficou empolgada e, decidida a ganhar o prêmio, passou a jogar com mais garra e durante mais tempo, para desespero das mães que quase perdiam a voz de tanto chamá-los.

Atrás do campinho, isoladas, viviam umas famílias que ganhavam a vida catando papelão, latas, vidros e plásticos. As crianças daquelas famílias raramente eram vistas, pois estavam sempre pelas ruas, recolhendo tudo o que pudesse ser reciclado. Não iam brincar no campinho, não freqüentavam igreja e nem escola. Bem, as duas últimas partes até que a gurizada nem achava tão ruim. Mas não freqüentar o campinho? Ai, ai... Isso era o inacreditável!

Os meninos passaram o fim de semana jogando, estudando estratégias, treinando cobrança de falta, escanteio, pênalti. E combinaram, também, uma “estratégia de choro” para convencer as mães a deixá-los treinar a partir das quatro horas e não só depois das seis.

Assim, segunda-feira, às quatro, estavam todos lá, prontos para mais um treino árduo. A bola de couro chamava e as medalhas cintilavam no pensamento deles. Treinavam divididos em dois times, mas jogariam juntos, com o reforço do Cláudio, primo do Davi, que completaria o time. Perceberam que não tinham reservas, mas confiavam que nada aconteceria.

Estavam lá, correndo, berrando, xingando... Felipe veio pela direita, deu um drible incrível em Luís e entrou rasgando na área. Betão, que era o melhor zagueiro do time, foi pra cima dele. Felipe deu um jogo de corpo, passou e preparou para chutar. Betão, envergonhado pelo “olé” que tinha levado, tentou barrar Felipe do jeito que pôde. Os dois foram ao chão. Felipe logo levantou:

- Caramba, Betão! Qual é a tua? Me esfolei todo.

Betão não levantou, se contorcia todo:

- Ai, meu braço! Meu braçoooo...

O time todo veio correndo. Ajudaram o Betão a levantar, mas o pulso direito dele parecia uma gelatina. Os olhos se arregalaram. E agora? Como iam jogar o campeonato sem o Betão, sem o melhor zagueiro?

- Pô, Lipe, e agora?

- Ele que veio pra cima de mim! Eu passei e ele me derrubou.

A turma já ia dar uns cascudos no Felipe, mas o Betão gemia de dar dó, acharam melhor ajudá-lo a ir até o Posto de Saúde. O auxiliar de enfermagem olhou o braço e disse:

- Espera um pouquinho, a doutora vai examinar, mas acho que quebrou.

Felipe ficou vermelho e balbuciou:

- Mas, tio, não dá pra arrumar?

- Claro que dá, só que vai ter de ficar sem poder usar o braço um bom tempo.

- Mas dá pra jogar bola, né? Ele joga com os pés...

Seu Jorge era da vila, conhecia todos eles, olhou para os meninos e entre o rir e ficar sério, disse:

- Sinto muito, mas não dá, não. O Betão não vai poder correr direito com um braço engessado. Além do mais, é arriscado e perigoso. Já pensou se ele cai? E também duvido que dona Teresa fosse deixar.

O Betão, esfolado, suado, sujo e com o braço doído, falou:

- É, a mãe não ia deixar mesmo.

Bah! Que enrascada! Felipe estava a ponto de sumir.

A doutora abriu a porta e chamou o Betão. O time todo quis entrar no consultório, mas ela disse:

- O que é isso, gurizada? Nada disso. Seu Jorge e eu vamos cuidar do Betão e vocês vão chamar a mãe dele.

Iiiiiiiiiihhh! A mãe do Betão, quem ia contar pra ela? A turma foi unânime:

- Lipe, tu que derrubou ele, tu que conta.

- Mas eu não tive culpa, ele me derrubou.

Não adiantou, não teve negociação. Felipe foi até a casa nº 43 e, muito timidamente, chamou dona Teresa. Gaguejando e suando, vermelho como um tomate, contou o que tinha acontecido. Dona Teresa enxugou as mãos no avental, tirou-o e foi até o postinho. Quando chegaram lá, o Betão já estava com o braço entalado e enfaixado.

- Jorge, o que aconteceu com o menino?

- Calma, Teresa, é só um pulso quebrado. A doutora já foi, mas entalou e enfaixou o braço. Daqui a uma semana, precisa trazer ele para colocar o gesso.

- Quanto tempo vai ficar assim?

- Entre a tala e o gesso uns 40 dias.

O time desabou. O campeonato era no fim de semana. Felipe parecia que ia cair durinho no chão. Bernardo tentou consertar a situação:

- Gente, vamos arrumar um substituto.

- Ai, Be, mas tu é muito tonto mesmo! O Betão é o melhor. Onde vamos arranjar um substituto até sábado?

Foram todos embora, mudos. No outro dia, na escola, tentaram fazer o Betão ver o lado bom do ocorrido, pelo menos não precisava copiar. Mas o time continuava desfalcado. Marcaram um treino-reunião no campinho, à tardinha.

Felipe foi o primeiro a chegar. Ficou chutando a bola sozinho e só percebeu a presença daquele guri gordinho quando a bola rolou para aquele lado e ele chutou-a de volta.

- Como que é teu nome?

- Gordo.

- Gordo? Isso não é apelido?

- É, mas é que eu não gosto do meu nome.

- E como que é?

- Horácio.

- Putz! É engraçado, mesmo. O meu nome é Felipe, mas todo mundo me chama de Lipe. Onde tu mora?

- Ali atrás.

- Ali, nas casinhas?

- É.

Era a primeira vez que Felipe via uma das crianças que moravam na ‘baixadinha’, como costumavam dizer. Perguntou se ele queria jogar bola até que os outros chegassem e começaram a correr.

Quando a turma chegou, Felipe e o Gordo já estavam suados. Betão tinha vindo junto para saber como ficaria a situação do time. Felipe adiantou-se:

- Já temos o jogador que faltava.

Os meninos olharam pro Gordo, desconfiados. Betão, que estava se achando no direito de dar pitaco em tudo, foi logo perguntando:

- Tu sabe jogar, piá?

O Gordo ficou sem graça, estava se sentindo deslocado. Felipe respondeu por ele:

- Sabe, sim. E se não sabe, azar, não temos outro mesmo. Pelo menos vamos poder jogar porque só com dez não pode.

- Eu acho que não sabe jogar nada.

Felipe se irritou:

- E tu acha que sabe muito né, Edu?!

- Melhor do que tu!

O clima começou a esquentar. Carlos deu um berro:

- Pára! Vão brigar, agora? Nós precisamos de um jogador, vamos experimentar, ora!

Um time para cada lado e o jogo começou. Meu Deus do céu! O Gordo era uma parede, ninguém passava por ele. No final do jogo, quase foi carregado pelo time. Betão chegou perto:

- Gordo, tu é fera!

O Gordo só ria, nem cabia em si.

Passaram a semana toda treinando. No sábado, o pai do Davi foi acompanhá-los (precisava ter um adulto junto) e todos diziam: “Ninguém vai conseguir passar pelo Gordo”.

Quase na hora do time fazer a estréia, Betão olhou pro Gordo e disse:

- Ô, Gordo, cadê teu tênis?

- Deixei em casa, eu jogo sempre de pé descalço, jogo melhor.

- Mas não dá, Gordo. Vão te arrebentar.

- Não, eu acostumei.

O Pai do Davi chamou os meninos para um lado, foram conversar. Betão saiu ventando em direção à baixada, não seria difícil encontrar a casa do Gordo. Passou a vila, atravessou o campinho e o terrenão baldio que separava a vila da baixada. Quando chegou lá, estancou. As casinhas eram todas de pedaços de zinco, papelão e alguns restos de tábuas. Ele nunca tinha chegado perto de lá, só via de longe.

Por alguns instantes ficou paralisado. Depois, lembrou-se do propósito da vinda e perguntou a um guri que vinha chegando com uma gaiota cheia de papelão:

- Ô, tu sabe onde mora o Gordo?

- É ali,naquela casa que tem flor na frente.

Betão chegou, bateu palmas. De trás da casinha, veio uma senhora. Ele perguntou:

- É aqui que mora o Gordo?

- É, sim.

- E a senhora é a mãe dele?

- Não, eu sou a vó, mas sou eu que crio ele. A mãe do Gordo morreu faz tempo.

Betão engoliu em seco. Perguntou:

- A senhora poderia fazer o favor de me dar o tênis dele? É que o nosso time vai jogar daqui a pouquinho.

- Que tênis? Nem sabia que o Horácio tinha arrumado um tênis. Vocês que deram pra ele?

O Betão quase desmaiou. Que tonto tinha sido! É claro que o Gordo não tinha tênis. Não tinha nem casa. Nem mãe.

- Ah, é. Esqueci!... Deixei lá em casa. Muito obrigado.

Deu meia volta e saiu correndo, de novo. “O Gordo não tem tênis”. “O Gordo não tem tênis!”, a cabeça do menino rodopiava. Atravessou o terreno baldio, o campinho e entrou em casa como um raio. A mãe gritou:

- O que é isso, guri? Quer cair e quebrar o outro braço?

- É urgente, mãe!

Com o braço livre, catou o tênis velho que tinha embaixo da cama, olhou para o tênis que tinha nos pés e saiu rápido. Dona Teresa ainda gritou:

- Não corre, guri! Se cair te dou uns tapas.

Betão chegou esbaforido. Parou perto do campo oficial do time da vila, respirou, viu que o jogo do time deles já ia começar, estavam todos se aquecendo. Foi chegando perto e quando o Gordo ficou meio sozinho, jogou o par de tênis perto dele e disse:

- Toma Gordo, demorei um pouco porque a tua mãe não estava achando eles.

Virou as costas e foi para o outro lado do campo. Não queria que o Gordo ficasse com vergonha. E muito menos que visse que ele estava chorando.