Contos Noturnos II - Primavera

Estive caminhando durante horas, a floresta se fez extensa e a noite profunda. Mal pude conter os temores. Um estanho pavor me alucina, quaisquer som provoca minha fértil imaginação. Os fantasmas correm soltos e eu sou a única alma viva insã o suficiente para manter-me acordada.

Ouço de longe cães latinto incessantemente, deve haver casas por aqui. Meus olhos têm se tornado esguios e frágeis, sinto um liquido escorrer viscoso pelos meus dedos durante minha insônia perturbadora. Não entendo como ainda deve haver seres que numa noite sem lua como esta se dão ao luxo do sono dos despreocupados, há coisas mais aterradoras que o cansaço, e disso eu sei bem.

Sinto ao longe o odor de flores abertas, são claras, de notas suaves. O cheiro me agrada e agoniza. Elas trazem mais angustia para a noite. Algo teima em se aproximar e por horas me esquivo, já não sei até mais quando permanecerei escondido. Meus temores são demasiado altos e minhas inspirações sombrias mais ainda.

Tenho uma lembrança vaga em meu peito. Um homem tão gentil! Não sei ao certo se já o vi ou se apenas sonhei com ele em algum de meus longos devaneios. Ele me abraça pela cintura, ele me beijava... Agora sinto como se o ar faltasse dessa maneira.

O cheiro está se tornando mais forte, e já consigo imaginar as flores entre si, como bocas escancaradas e molhadas, orvalhando seu odor fúnebre em suas pétalas brancas como o véu. Eu o vejo as colhendo e as delineando com os dedos. Ele as alimenta com ósculos inacabados, cobertos de terror e ternura.

Sinto algo subir pelas minhas pernas, lentamente e esguio sobe o meu calcanhar. O cheiro mais intenso me penetra no corpo e me impregna quase em topor. São finas cordas. São finas mãos aveludadas que com dedos suaves me acariciam e devoram. Sinto-o mais próximo. Ele me apavora e fascina. Tenho medo e ainda assim o adoro. Há algo corroendo meu coração.

Lambo meus dedos e sorvo do néctar. É sangue! Há algo que me instiga a fome e me sacia o corpo. Novamente vejo raízes cobrindo-me o ventre e mal tenho forças para me controlar. Me sufoca, e uma dor interna impera meu ser! Gemo e me contorço, porém não consigo sair deste emaranhado de bocas e dedos famintos!

As luzes se apagam! Uma cachoeira transborda bravia e feroz em meu intimo cósmico, os cães uivam desesperados. Eu o vejo bater em minha porta. Seu rosto é uma árvore florida. Seu ser é o que me habita na escuridão.

Agora só há gritos e algo que percorre o ar infestado de odor asfixiante, é como se todos os sons do mundo ecoassem na cabeça, igual à uma grande onda... Uma espada perfura o corpo insaciavelmente!

(Rafaela Duccini - 31/10/2008)

R Duccini
Enviado por R Duccini em 04/12/2008
Reeditado em 04/12/2008
Código do texto: T1318038
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