Vizinhança

Que saudade do perfume esperançoso das flores de jambo adormecidas n’água... Das estrelinhas do doce de carambola cintilando docemente na compota Bacará...

Que saudade daqueles poucos do tanto que vivíamos: do carrinho de rolimã ladeira abaixo elevando a vida e alçando puros sonhos de futuro! Ah, que saudade de mim, que hoje mal me vejo e me encontro, assim, me avistando longínquo, mesmo sem distância; sentindo volta e meia esse gosto acre doce tragado, que me vem dos olhos nublados, caindo pelo céu da boca pra se esconder calado na caverna da garganta!

Mas hoje, não! Hoje eu vou sentir todas as saudades que me cabem e cabem em mim. Deixá-las ecoar. Eu vou me achar aqui como se fosse acolá, vou me pegar feito num pique-tá, lá no lá que me escondi de mim... lá, junto às minhas coisas e coisas minhas: coisas do baú das memórias! Pois é lá que eu estou, é lá que sou o que não cheguei a ser! Para lá é que eu vou! Pois eu, igual a quase todo mundo, sou vizinho de mim, não me habito, não me habitei! Olhei de fora, e de vez em quando, quando em vez, em determinadas datas só me visitei... e sempre fui embora...não era a minha casa aquela minha, era casa de outras pessoas...e de outras pessoas em mim...não eu, não minha!Bom menino fui, bom vizinho fui! Fui... E talvez seja, mas mal sei quem sou. No entanto, agora que me desculpem esses meus vizinhos tais: vão ter que arrumar outro lugar para morar: consegui um dinheirinho, vou comprar essa casa linda que, aliás deveria ter sido sempre minha e eu só olhava de fora! Sim! Vou pagar pelo que era para ter sido sempre meu, não tem problema, é lucro! Ah!... Posso até estar bem mais velho ou mesmo velho, mas vou me sentir uma verdadeira criança numa nova vida de verdade e verdades, tantas que poderei até mentir, sem medo!Abraçado a mim mesmo com espontaneidade infantil, me sorrindo pleno e simples, reencontrando a simplicidade dos meus puros sonhos de futuro! Futuro?

Nossa! Ufa! Que correria heim? Tantas pernas têm o pensamento! Eu cá comigo também me espanto e agradeço aos tropeços da vida que me fizeram cair em mim, aqui! Finalmente, por sorte, consegui me achar! Vou tirar esse meu cheiro de guardado, bater a poeira, dar um sopro novo e uma baforadinha pra dar brilho, esfregar uma flanela: aí eu vou ficar novinho em folha e ao mesmo tempo mais eterno do que um pergaminho!

Agora tenho que me despedir, vou pagar algumas contas atrasadas desse meu faz-de-conta e sei que terei outras tantas para depois; mas logo vou quitar essa casa e ela será realmente minha! Sei, já sei que o mundo é feroz, então vou me prevenir e botar um mundinho-cãozinho no meu quintal só para espantar o mal... As minhas lembranças boas vou cultivar nos jardins sob o perfume esperançoso das flores de jambo adormecidas n’água e junto das estrelinhas do doce de carambola cintilando docemente na compota de cristal Bacará; de tal modo vou cultivá-las que toda a vizinhança irá sentir o teor desse perfume e o gosto doce dessas minhas lembranças!

Toda a vizinhança irá sentir!

Toda mesmo, inclusive eu, eu que sempre fui vizinho de mim!

Até logo...

PauloPCampos(Paulinho Campos)
Enviado por PauloPCampos(Paulinho Campos) em 13/12/2008
Reeditado em 13/12/2008
Código do texto: T1332935
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.