O PRESENTE DE NATAL

Aquele menino triste...

Era véspera de Natal. E era noite. Vinte e duas horas marcavam os relógios de ponteiros bem regulados. Dizendo isso nem preciso lembrar que as luzes brilhavam na cidade e no comum das pessoas que iam e vinham nas ruas, o rosto mostrava um ar de alegria, talvez de esperança, é possível que de amor, de vontade de viver, de ser feliz.

Pelas janelas abertas dos apartamentos lá no alto e das casas residenciais cá em baixo, entre estas destacando-se as de dois pavimentos, sem que, no entanto, desmerecessem uma referência as de pavimento único, térreas e baixinhas - a luz se mostrava para marcar o conforto do lar, a festa de família, os comes-e-bebes. Dos famintos, dos miseráveis, dos que não têm um lar onde morem, um barraco ao menos onde metam a cabeça, e dormem no chão da rua, na melhor das hipóteses abrigados sob uma marquise, seja noite de mormaço, ou frio, ou chuva, destes, não se fala no Dia do Natal - há como que uma dor moral, um íntimo constrangimento, uma inibição cerebral em cada um de nós que festejamos o Nascimento do Cristo, pobre menino de Belém que nasceu e viveu entre os humildes e em nome de Deus morreu na cruz.

Aquele menino triste de uma das tantas favelas de Salvador aparecia sempre na residência de Emiliano pedindo sobras de comida. Comia qualquer coisa que lhe davam onde pedia - restos de pão súper-duro, restos de arroz ou feijão, de salada, de tudo. Tudo que era sobejo, sadio ou deteriorado, nem olhava para isso, ia engolindo e pedindo mais, esperando mais, o pobre garoto faminto. Aqui, ali, recebia um níquel, o menor que se tivesse à mão.

Era véspera de Natal e aquele menino triste se aproximou de Emiliano.

- O senhor me dá uma Natal? - pediu.

- Que Natal você deseja?

- Eu sei... Um dinheiro... Um dinheiro maiorzinho. O pessoal me dá dez, vinte...

- E se não fosse dinheiro. Sem esse limite de dez, vinte, se alguém lhe oferecesse um presente de Natal à sua escolha? Você escolheria o quê?

- Eu sei...

- Pense e veja se descobre o que escolheria. Alguma coisa que lhe agrade muito, uma coisa que você desejasse a vida toda sem conseguir.

- Eu...

- Fala!

- Eu queria um patim.

- Um patim ou uma bicicleta?

- Um patim e uma bicicleta.

- Um patim e uma bicicleta, ou um revólver de brinquedo?

- Ah! Um revolver de brinquedo!

- E a bicicleta e o patim?

- Se puder tudo...

- E não sendo tudo? O revólver, a bicicleta ou o patim?

- Não! O revólver!

- Por que o revólver?

- Eu sei! É um brinquedo de macho. Quando a gente crescer já sabe manejar. É só arranjar um de verdade...

- Arranja um de verdade e faz o quê?

- Ora, a gente se defende! Nego não bota a gente de besta, que a gente tora no meio.

Não lhe deu o revólver nem a bicicleta. Nem o patim. Deu uma cédula pouco maior que o seu limite. Cinqüenta mil réis... Aliás, já se dizia cruzeiro... Sem novos e sem velhos, o que significa os primeiros cruzeirinhos brasileiros, que substituíram o velho mil réis. Um bom dinheiro, naqueles tempos, convenhamos, para o Natal de uma criança pobre, pedinte, aliás. Para o Natal dos afortunados todo luxo é insuficiente, precisa-se sempre de um pouco mais. Para o Natal dos que não possuem nada de seu, qualquer coisa basta.

Anos depois, era uma véspera de Natal. O Natal de todos os anos nas mesas fartas, a luz brilhando na via pública e no interior das residências. O Natal de todos os anos nas palafitas e barracos miseráveis. O Natal de todos os anos nas sarjetas, debaixo das marquises, sob o teto do céu. Dois assaltantes tomaram-lhe a casa. Um deles, frente a frente, o reconheceu e disse:

- Ah, é o senhor, meu tio?! Eu consegui um revólver de verdade. Ta'qui, ó. Qualquer "chove não molha", sabe como é, bala come. Ande direitinho com a gente se não, já viu! - e apontou a arma. Não se lembra de mim? - indagou. Parece que não se lembra...

- Não me lembro, respondeu assombrado. Quem é você? Me conhece de onde?

- Aquele que o senhor falou de dar um revólver de brinquedo e não deu. Não se lembra? Faz tempo, eu era menino... Tá'qui, ó, um de verdade. O sujeito tracejou, já sabe (rodou a arma na mão e fez mira, rapidamente, em seu focinho).

Emiliano foi descendo na memória, descendo, descendo... Deu com uma criança que pedia uma Natal. Puxou a carteira, tirou uma cédula de quinhentos cruzados novos e lhe passou. Ele recebeu dizendo:

- É o dinheiro desvaloriza muito ligeiro. Há três anos o senhor me deu cinqüenta paus. Dos velhos! Dá-me a carteira que eu vou m'embira, ta? Tomou a carteira de sua mão, limpou-a, arrancou o relógio do pulso e arrastou o companheiro pelo braço:

- Vambora, esse é freguês velho. Depois voltamo, meu tio, fica de bico fechado (falou apontando-lhe o revólver em cima dos olhos). Da próxima abre mais a mão, para se sair bem. Nóis voltamo, tá bom? E nunca mais promete as coisa que num quer dar.