O Dia D.

Ele saiu do consultório médico com um envelope na mão, sem saber para onde ir. Caminhou para um lado e quando viu já estava caminhando para outro. Parou. Andou. Sentou. Olhava o mundo com um olhar de despedida. Havia um nó na garganta. Queria gritar mas não podia, não conseguia. O Sol brilhava. Um calor insuportável e ele com sua jaqueta jeans não percebia que o suor escorria pela sua pele gelada. Seu pensamento era frio, só pensava nas conseqüências de sua partida.

Pegou um ônibus qualquer, para qualquer lugar. Só não queria chegar em casa. Tomou um rumo desconhecido, desafiando a si mesmo. Viajou duas horas e desceu em um ponto qualquer de um ponto qualquer da cidade. Foi até o primeiro bar que avistou. Pediu uma cerveja. Sentou em pé. Bebeu rápido. Começou a chover e os olhos dele se encheram de lágrimas. Pensou profundo em nada. Sentiu vontade de correr sem parar.

- Tudo se transforma tão rápido que as vezes nem percebemos que tudo se transforma tão rápido.

O pensamento acelerou seu coração. A chuva parou. No céu um arco-íris surge imponente. Um ar de ironia da vida dos vivos. A beleza de se estar vivo.

Avistou uns poucos meninos jogando bola em um pequeno campo, um campinho de várzea. Sentou pra ver a molecada jogar. Lembrou do tempo de menino, quando corria sem saber que o tempo corria junto.

Levantou com vontade de rever os antigos amigos. Pegou um ônibus e foi até Campo Grande, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, de onde saiu com 25 anos para fazer universidade. Quando seus pais morreram, vendeu a casa e prometeu nunca mais aparecer por aquelas bandas. Não gostava do bairro e não sabia explicar porque. Talvez por saudade dos amigos que foram mortos pelos bandidos milicianos. Agora estava com vontade de sentir cada lembrança. Na viagem, que levou um pouco mais de uma hora, fez uma lista das pessoas que queria encontrar, dos lugares que queria visitar.

Lembrou do Max, um sujeito bacana que foi assassinado por ter se envolvido com um povo barra pesada. Sempre se sentiu culpado pelo destino trágico do garoto. Quando eram crianças o Max era o único negro da galera, a molecada não entendia como um negro podia ser tão gente boa, então eles abraçavam o menino e diziam que ele era negro de alma branca. Isto é o que o racismo faz com a gente que sem saber vamos reproduzindo o que chega até nós. Pensou e suspirou:

- Coitado do Max.

Quando desceu do ônibus esqueceu quem queria visitar. Quis andar feito fantasma. Não queria ser encontrado. Passou pela pracinha, pela rua onde brincava, pela casa do Max. Lembrou do Joe, que fora assassinado por um segurança de rua só porque estava fumando um baseado. Morto pela estupidez humana. Quantos foram mortos? Pode lembrar de pelo menos mais dois amigos que tinham sido assassinados pela mesma ignorância.

Foi se aproximando da vila onde ficava a casa de seus pais. Coração na mão. Já queria chorar. Chorando entrou na vila. Não havia ninguém na Rua. Chegou na porta da sua antiga casa e ficou ali parado. Esticou a mão e tocou no portão. Quantas vezes abriu aquele portão? Quantas vezes chamou sua mãe? Ela sempre respondia com uma voz carinhosa (- Já vai!). Lembrou e Chorou profundo. Ficou ali um tempo. Queria entrar na casa. Andar pelos cômodos. A vontade aumentou. Chamou de impulso. Uma senhorinha pequena apareceu. Perguntou quem era. Por um momento pensou em dizer:

- Sou eu mãe...

Chorou e saiu correndo. Ficou com medo de enlouquecer e fazer alguma besteira. Caminhou até a casa de uma amiga do outro lado da linha do trem. Campo Grande é uma bairro dividido pela linha férrea. Subiu o viaduto e sentiu a sensação de que nada havia mudado muito. As ruas eram as mesmas. algumas construções novas, mas no fundo estava tudo ali, todas as lembranças. Chegou a casa da sua amiga. Não havia ninguém em casa. A casa parecia abandonada, como se todos tivessem partido a muito tempo. Se sentindo abandonado foi caminhando. Já era noite resolveu ligar para casa. Pegou o celular e tremulo discou para sua esposa:

- Alo... Escuta... Estou bem. Não vou dormir em casa hoje. Depois explico. Te amo. Mas hoje não dá. Quero ficar só. Beijos.

Desligou o telefone. Precisava respirar. Sentou em um bar e bebeu mas algumas cervejas. Gelou a espinha quando ouviu alguém falar seu nome:

- Antonio? Tio Antonio...é você?

O sobrinho extremamente emocionado foi logo falando:

- Minha mãe vai ficar muito feliz de te ver. O senhor está bem?

Fazia 20 anos desde a ultima vez que tinha visto seu sobrinho. Ele não conseguiu dizer nada. Abraçou forte e sentiu toda a lembrança escorrer pelos olhos. Ficaram abraçados por um longo tempo, apenas choravam.

Pagou a conta e saíram dali em direção a casa da irmã que ficaria feliz com este encontro tão esperado. Foi sem falar nada todo o trajeto. O sobrinho ligou para mãe avisando.

- Tio, minha mãe quase teve um troço agora. Ela disse que iria ligar para todo mundo dizendo que você havia voltado. (riu) A ultima noticia que tivemos sua é que estava na Itália. Até tentei contato, mas o senhor nunca respondia.

Ele olhou como quem pede desculpas por tudo. Por um tempo ficou sem fazer contato com a família. Gostava de todos. Mas era sua maneira de viver. Uma espécie de libertação. Mas agora, neste momento, tudo aquilo não fazia sentido e ele se culpava pelos anos de afastamento. Vacilando de emoção conseguiu esboçar algumas palavras.

- Foi bom te encontrar... Junior. Pensei em você todos estes anos. Mas me acovardei depois da morte de seus avós e sumi. Corri o mundo. Mas nada disso faz sentido agora. Que bom que você me encontrou. Não trago noticias muito boas. Hoje descobri que estou muito doente. Fui ao médico pois estava sentido umas dores no peito. Os exames não foram animadores. Por um momento pensei que finalmente o álcool e a vida desregrada iriam me dar o alivio desejado. Enfim a despedida, finalmente tudo estaria acabado. Toda a culpa, toda a dor, toda a saudade iriam embora. Fiquei feliz de saber que meu momento havia chegado. Mas de repente me encontro vivo, cheio de lembranças. Tão vivo na despedida que não sei por onde começar. Você sempre me entendeu, talvez tenha sido o único. Preciso descansar, preciso de sossego.

O Sobrinho percebeu, de alguma maneira, que não deveria esticar aquela conversa, pelo menos não agora. Então disse seguro:

- Tio, agora nós estamos juntos novamente. Esquece tudo e descansa.

Foi chegando a casa da irmã, já havia um rebuliço no portão. Todo os estavam chegando ao mesmo tempo, seus irmãos, sobrinhos e primos. Era uma verdadeira festa de boas vindas.

Ele pediu um tempo no carro sozinho. Os irmão se posicionaram e estavam todos visivelmente emocionados. Ele respirou fundo e saiu do carro. Chegou perto caminhando devagar e de cabeça baixa... Levantou a cabeça olhou profundo. Todos choraram o mesmo choro. Depois riram e se abraçaram por um longo tempo. Neste dia todos estavam nascendo novamente. Uma família se reunindo depois de muito tempo. As lembranças eram tantas que levaria uma vida ou mais para sentir tudo novamente.

Até agora, depois do reencontro, tudo tem sido muito bom entre eles. Mas ele ainda não teve coragem de falar de sua doença fatal.

Macaco Pelado
Enviado por Macaco Pelado em 18/01/2009
Reeditado em 19/01/2009
Código do texto: T1392119