A outra- Pequenas histórias encantadas 2


          O fato ocorreu há muito tempo, eu ainda era um homem relativamente jovem, disse o velho. Por isso acho que agora posso contar, não vai mais fazer mal a ninguém. Nem a mim. Usarei nomes falsos para que você não os reconheça, pois ainda vivem. Dois deles. E eu.  Porque uma morreu. Esta é uma história de morte.

          O velho estava assentado em uma cadeira de balanço, na varanda de uma casa de repouso. Ao seu lado o jovem ouvia atentamente. Gostava de ouvir as histórias do tio avô e vinha vê-lo ocasionalmente. O jovem era escritor e tinha sensibilidade suficiente para saber que as histórias contadas pelo velho valiam ouro.
 

          Elas eram gêmeas, idênticas na aparência. Mas na essência, Deus que nos livrasse de cair nas garras de uma delas. Pérfida. Egoísta. Maliciosa. Abusada. Seus nomes? Lilith e Eva. Vejo que reconheceu os nomes e aposto como já decidiu quem era a boa e quem era a má.  Mas está errado. A boa era Lilith. Verdadeira. A malévola, Eva. O homem? Um jovem chamado Adam, assim o velho continua sua história após uma pausa para tomar fôlego e fixar as lembranças que as vezes se misturavam.

          A tarde já ia longe e os primeiros sinais do poente surgiam no céu. O jovem riu internamente conforme seus olhos mostravam, dos nomes escolhidos pelo Velho que percebeu, mas não se importou. Continuou com palavras espaçadas a contar sua história e às vezes parava para conter sua emoção. O jovem esperava pacientemente, sem nenhum apressamento. Adaptava seu tempo ao tempo do contador.

          Quando Adam apareceu na cidade todas as mulheres ainda solteiras suspiraram e começaram a sonhar. Mas, desde o começo ele só teve olhos para Lilith. Isso enlouqueceu Eva que começou a dar em cima do rapaz acintosamente. E o que era mais estranho é que ele conseguia identificá-las e não caía nos estratagemas de Eva. Ele sempre a desmoralizava. Ah, você deve estar perguntando como eu sabia disso. Não, não era ele quem me contava.  Sempre foi uma pessoa discreta.Era ela. Nós éramos amantes. Fez uma pausa para que o jovem absorvesse o espanto esperando talvez alguma pergunta. Mas o espanto do jovem foi tanto que continuou calado embora arregalasse os olhos. Então o Velho continuou. Olhando para o vazio, sem fixar nos olhos fixos do jovem. - E ela fazia questão que eu soubesse de tudo. Tudo. Jurava vingança. E eu também passei a ser absorvido por esse mal: a vingança. Só que eu planejava me vingar dela. Só não sabia como. Ela fazia de mim gato e sapato.

         Ela planejou tudo. Era uma excelente costureira. Fazia roupas lindas para si mesma e para a irmã. Nunca roupas iguais, as suas eram sempre mais bonitas. E assim foi: ela fez um vestido especial para si mesma. Para a festa da Padroeira. Foi a Missa com ele. Andou pela pracinha. Todo mundo viu e comentou sobre a beleza da roupa. Alguns dias depois ela me disse: Dei o meu vestido novo para Lilith. E foi quem eu vi passar aquela manhã. Lilith, com o vestido novo, que ganhou da irmã. Ia em direção da Estação Ferroviária, um pouco retirada do centro do povoado. A casa em que eu morava também ficava retirada e quando ela passou por mim, conversou comigo. Um cumprimento breve, uma informação: ia se encontrar com Adam na cidade vizinha, comprar as alianças para o noivado. Perguntou se eu já sabia e eu disse que sim.Tinha sido convidado para a cerimônia do pedido. Talvez fosse eu a fazê-lo. Pouco depois Eva passou. Estranhei. Vestia uma roupa de Lilith. E me disse claramente, apenas movendo os lábios, quando passou junto a onde eu estava, podando as árvores da entrada da Igreja. Silabicamente. VO CÊ NÃO ME VIU. E eu não a vi. Não vi ninguém passar, só Eva, foi o que eu disse a polícia quando veio me interrogar. Só Eva. Foi quando eu soube que Eva tinha morrido,  uma pedrada na cabeça. Naquele tempo não havia exames que pudessem determinar se Eva era Eva mesmo. Mas todos disseram que sim. Os pais, os amigos, a própria Eva travestida de Lilith.  E eu. Por que?  Se eu contasse que a sobrevivente era Eva e que ela matara a irmã, para que acreditassem eu teria que contar como eu sabia. E como eu, um sacerdote de Deus ainda relativamente jovem  poderia condenar a mulher que trazia meu filho no ventre a passar o resto de sua vida na cadeia?Como eu poderia também suportar um escândalo, desonrar publicamente a Fé que eu escolhera? Não, eu me calei. Deixei que os dois se casassem e fossem infelizes para sempre. Ele sempre teve certeza, mas também não podia fazer nada. Não tinha como desmenti-la e sabia que a namorada estava grávida. Tentou acreditar para não morrer de dor. Mas me fez essas confidências, fora do confessionário. Por isso eu conto. E eu tentava convencê-lo de que estava tudo certo. Que a mulher com quem se casara era Lilith. O castigo dela? Não teve o amor do homem que amava e para não se trair teve que se transformar realmente na outra. Vestiu pele de cordeiro. Mudou seu comportamento. Fez tudo para ser amada. A minha vingança? A minha vingança está acontecendo agora, meu neto. E, com um ronco suave, fechou os olhos e partiu. (02/02/09)