F=F+E+A

No primeiro dia Rose Santos passou lavanda nos pulsos e talco no colo, aquele da embalagem redonda e grande pompom de lã. Sentiu-se cheirosa, cheirosa e frágil, como se fosse cair a qualquer momento. Aspirou o ar que cheirava a café, provavelmente dos vizinhos da esquerda: Elza e Torquato. Dona Elza falava com um arrastado sotaque sulista, gostava de fazer artesanatos mal feitos e caros que nunca achavam compradores, para grande espanto dela: “Não me dão valor”. dizia. Seu Torquato era vascaíno doente e obrigou os filhos a serem também, tinha belos olhos e dizia que o que vira pela TV era tudo mentira: o Homem nunca fora à Lua, aquelas imagens eram todas feitas nos estúdios de Hollywood para enganar os mais ingênuos, pois onde já se viu o ser humano sair do planeta e dar de cara com São Jorge? impossível. O papagaio de seu Torquato falava droga em várias línguas e Rose não acreditava que alguém perderia tempo ensinando um papagaio a falar impropérios. Entre os palavrões do papagaio e os gritos do vendedor de gás (um dia ainda ficará rouco) Rose lambeu a manhã de seus olhos com os dedos molhados e passeou pelo calçadão da Praia da Costa, quando o sol de outono ainda estava fresco. Comprou galhinhos de alfazema na feira e os pendurou nas janelas. Tomou leite, comeu mingau de milho e riu do olho vesgo da garota de rosa. Saiu e olhou as pessoas na rua, no ônibus, no elevador, na praça, e o simples ato de mirar causava grande estranheza, como se esperassem que ela olhasse e não visse, fosse cega não sendo.

No dia segundo ela folheou seus antigos livros de escola, fez bichinhos de massa de modelar, recortou vestidos da moda na cartolina branca e olhou com maravilha todas as cores de uma caixa antiga de giz de cera. Foi até a praia e ficou duas horas a chutar bola e empinar pipa. Admirou-se com o mundo: como seria a fotossíntese se as árvores fossem amarelas? por que o céu da lua era preto? o que era mais breve: o instante ou o momento? existiria destino? a idéia de que a humanidade estava fadada a um só caminho lhe era aterradora: seria como uma grande rede invisível que mantivesse todos juntos, mesmo contra as vontades individuais. Seria muito triste se a faxineira estivesse fadada a cair no sabão mesmo se usasse um solado antiderrapante. A vida tem de dar liberdade de escolha, pensou ela, liberdade para que os caminhos tomados hoje mudem a historia depois de amanhã, mesmo que no momento ela não soubesse com muita clareza em qual mudança ela queria estar: sentia-se como um tatuado polinésio no meio da intentona bolchevique. Mas por outro lado, ela pensou, talvez fosse bom que a eletricidade fosse inventada mais dia menos dia pois ninguém mais vive sem a lâmpada, o secador de cabelos, o ar-condicionado ou a televisão.

Dia terceiro Rose passeou os olhos por revistas que traziam rapazes das novelas nas capas. Abriu o guarda-roupa e olhou todas as combinações que poderia fazer com seus vestidos de alcinha, suas calças de algodão e suas blusas de popeline. Gostava de suas roupas, principalmente aquelas que sua mãe costurava para ela, algumas já puídas mas não importava. Treinou um beijo no dorso da mão direita, cantarolou Chico Buarque enquanto ensaboava-se no banho. Cortou o cabelo, fez trancinhas, comprou um par de chinelos de couro da feira hippie de Belo Horizonte. Foi à casa de Marcinha e navegou pela internet com o apelido de @ gostos@. Leu Meu Pé de Laranja Lima, Éramos Seis, Reinações de Narizinho e romances Harlequim de banca. Seu sonho era encontrar um grande amor por acaso, não importa se entre as prateleiras de cristal de uma boutique de luxo ou na quitanda da esquina. Poderia, por que não, encontrar a alma gêmea ao comprar uma passagem para a Índia: "Ah, você vai para Nova Deli também? que bom, quem sabe nos encontramos lá para dividirmos o mesmo guru..." No entanto, na imaginação de Rose Santos sua alma gêmea duraria ad aeternum na condição de coadjuvante: o casamento para ela era algo mais complicado que um jogo de xadrez disputado com o Deep Blue - a rainha olha seus pés em cima do liso tabuleiro branco e preto e vê refletida sua coroa. Quando olha à frente vê os peões espalhados e do outro lado do quadriculado o rei, aquele a quem está prometida. A rainha olha a seu lado e vê o monarca seu pai. Do outro lado o rei olha à sua frente, fortemente influenciado pela monarca, sua mãe. A rainha escrutina o bispo, que pisca para o rei, que olha a monarca, que observa o monarca, que pisca para o cavalo, que vira-se para o peão, que nada sabe do que acontece - não, Rose Santos não sabia se queria aquilo para si.

No quarto dia ela leu Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino e Padre Antônio Vieira; mastigou Nelson Rodrigues, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade. Respirou Olavo Bilac, Machado de Assis e Manoel Bandeira. Sonhou com Jorge Amado, Marina Colasanti e Cecília Meireles. Alorou os pêlos do corpo, fez o regime do abacaxi e tornou-se fã da revista Cosmopolitan. Desistiu de entender a diferença entre molho rosé e tártaro, "diet e light", chinês mandarim e chinês cantonense, balayage e luzes, raios UVA e UVB, queijo brie e camembert. Não entendeu as ditaduras do mundo nem as suas próprias (afinal foi contra, inicialmente, ao voto direto para presidente da república). Foi a favor da revolução armada, da discriminalização da maconha e do aborto, da pena de morte, da abolição completa da censura... e depois pensou tudo ao contrário. Ela queria doar todos os órgãos depois da morte, afinal este derradeiro gesto seria capaz de salvar a vida de outro ser humano, mas também estava insegura quanto à competência de quem fosse afirmar seu óbito, avisar a família , ver quais órgãos poderiam ser doados e achar um doador compatível. Não estava bem certa agora de querer ser doadora. Sentia-se egoísta e miserável.

Quinto dia e Rose Santos fez um 5S em seu quarto: etiquetou todas as suas pastas com letra de arquiteto que aprendeu com seu primo, arrumou suas gavetas e separou as roupas de inverno das de verão, jogou fora o manual do vídeo cassete, juntou com um clipe os recibos para a declaração de imposto de renda, descartou a velha simpatia para achar sua alma gêmea, desarrumou os peixes que o feng shui disse para deixar no canto esquerdo do quarto para atrair dinheiro, tomou seu remédio na hora certa. Foi ao cinema assistir a um filme iraniano, comeu uma caixa inteira de bombons com licor de avelã, perdeu o jogo que disputou consigo mesma no computador, deu esmola a um velho que parecia o Antony Queen, namorou um colar de águas-marinhas na vitrine da joalheria do Shopping Vitória e bebeu um caldo de cana gelado. Sob a ponte ela descansou em um banquinho de ferro entre as flores, todas à venda, todas coloridas: bromélias, orquídeas, margaridas, lírios. O rapazote que molhava os vasos chamava-se Salazar e era muito emburrado. Teria visto flores de lis ou foi impressão? parecia que o colorido das flores era o mundo como deveria ser, e o cinza de fora era uma tela esperando pelo artista, prestes a trazer significado e alegria. Todas as cores da moda estavam ali, e as que já tinham saído de moda também, como aquele beijo rosa choque... mas ora bolas, se eram flores elas não podiam sair de moda afinal, a natureza nunca era cafona. As margaridas eram tão vinho que provocaram nela longos minutos de análise, enquanto os vasos pareciam sair de foco em sua cabeça. Orquídeas brigavam com as heras que caíam de um papagaio de madeira pintado de laranja e vermelho, enquanto no balde de plástico havia uma revolução de cravos. Rose Santos imaginou que se um carro caísse da ponte naquela hora cairia sobre um mar de flores, o que seria nada mal para uma queda de uma ponte cinza. Se caísse ela ofereceria ao motorista uma rosa vermelha como aquela na cesta de vime. Mas aquela rosa natural era tão perfeita que parecia artificial, e rosas artificiais não eram dadas de presente em momentos de crise. Talvez se pegasse uma rosa artificial que parecesse natural fosse melhor, uma rosa com matizes de tinta amarelo oca pelo talo em pontos estratégicos...O motorista agradeceria comovido claro, com as pupilas dilatadas e os lábios entreabertos como só um grande ator faria. Ela queria que sua vida fosse um programa de televisão para ligar e desligar quando lhe aprouvesse, bastando mudar de canal quando o rumo dos acontecimentos não estivesse a contento. Rose Santos seria a atriz principal de sua própria novela e poderia assistir de camarote a cara que fez quando pediu aumento para seu chefe e ele negou sem ao menos ser diplomata. Gostou da cara que fez pois não demonstrou em hora alguma a fúria avassaladora que comia seu estômago e fazia-a ter vontade de colocar para fora todas as injustiças a que era forçada no emprego, principalmente as horas extras intermináveis ou a sobrecarga de serviço. Futuramente ela seria diretora do filme dela mesma, e daria toques geniais com uma bonita música de abertura. Pensou em um título: A Vida, A Doce Vida, A Amarga Vida, Eu e Minha Vida. Precisaria pensar melhor.

No sexto dia, aliviada, recebeu o resultado do laboratório: não estava com câncer.

No sétimo dia foi atropelada.

* Felicidade = Estilo de vida + Estabilidade + Auto-estima

Tatiana Brioschi
Enviado por Tatiana Brioschi em 12/02/2009
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