Pequenos Grandes Homens

“Bom dia” disse Zangado. “Quer que eu lhe apresente este lugar?”

“Pode ser... Eu já te vi em algum lugar. Onde será que foi?” perguntei.

“Provavelmente no filme Branca de Neve. Sim, sou eu, o anão Zangado” disse ele.

O anão me recebeu em uma espécie de recepção, parecida com de um hospital, e foi andando incrivelmente rápido para suas pequenas pernas. Passou por um tanto de corredores, mas evitou falar muito deles:

“Você já tem um lugar muito especial para ir. Não se preocupe com esses caminhos”.

Subitamente, me percebi no fim do salão. Na minha frente, havia uma fita métrica grudada do chão até o teto. Ao lado deste instrumento, havia uma velha gorda que me encostou de costas para a parede, podendo assim ver minha altura:

“Exatamente o que eu pensava!” disse o anão. “Parabéns. Você acabou de ser selecionado para um lugar muito especial e reservado para poucos”.

“Hum... E que lugar é esse?”.

“O lugar dos pequenos grandes homens. Se não fosse pelos seus um metro e sessenta, você iria para o salão dos insignificantes”.

“Como assim ir para um salão? Eu ouvi você me chamar de insignificante?”.

“Me acompanhe que você vai entender”.

Muda de cena. Eu estava em um pátio estibirrapitandipamente (essa palavra não existe, mas é para demonstrar a ordem de grandeza) grande. Cheio de flores e muitas árvores. Aquele cheiro, aquele calor... Parecia que eu havia desmaiado. Deitei-me na relva rala e parecia um maníaco drogado. Aquele lugar me possuiu! Mas eu ouvi uma melodia estranhamente familiar:

“Eu vou, eu vou. Para casa agora eu vou. Pararatimbum, pararatimbum, eu vou, eu vou, eu vou...”

“Os sete anões!” eu pensei. “Aliás”, disse refazendo as contas, “seis anões! Cadê o outro?”

“Acordou, neném?” disse uma voz grossa. “É incrível como todo mundo que chega aqui dorme igual um urso!”.

Olhei para o lado e lá estava Zangado.

“Sim, acordei” respondi. “Ei, por que você não está com os outros anões?”.

“É uma longa história” disse ele, com um suspiro de quem se lembrou de algo longínquo. “Longa nada, é só invenção minha. Foi um sorteio, e eu ganhei. Agora eu sou o guia do País dos Pequenos Grandes Homens”.

“Ainda não estou entendendo nada. Onde estamos? Por que aqui é tão especial?”

“Siga-me que eu te explico” disse Zangado. E eu obedeci.

“É o seguinte: quando alguém morre vai pra algum lugar, dependendo da vida que levou na terra em função do seu perfil. Você era um cara que...”

“O quê?! Eu morri?” indaguei com todo o meu fôlego.

“Er... Você não sabia? Você morreu entalado na privada”.

“Entalado na... Era só o que me faltava! E agora, como minha mulher vai ficar?”

“Não se preocupe, ela morreu também”.

“Que?! Meu Deus! Onde ela esta?”.

“No País das Eternas Donas de Casa. Eu conferi na sua ficha”.

“Por que raios você vasculhou minha ficha?”.

“Perdão, foi só curiosidade. Mas é que você me lembra meu primo”.

“Por quê? Ele morreu também?”.

“Não, ele fede”.

Eu já não agüentava mais. Morri entalado em uma privada, minha mulher também morreu, eu fedia...

“Calma, amigo, calma” Zangado me consolou. “Conheço algumas pessoas que vão fazer você se sentir bem. Venha”.

Já estava cansado de segui-lo, mas mesmo assim o acompanhei. Entramos num corredor com várias portas, com placas informativas. Paramos na frente de uma delas, e o anão parecia ansioso:

“Nossa primeira visita pode ser bem agitada. Prepare-se”.

Ao entrar na porta, dei uma rápida espiada na placa, que estava escrito: “Política – Não é para você”.

*

“Quem quase conquistou a Europa inteira, hein? Pode dizer! Não adianta, Getúlio, eu fui melhor que você” disse uma voz com forte sotaque.

“Não é bem assim, seu estúpido maníaco” disse Getúlio. “Você conquistou metade da Europa, e daí? O que você fez com o povo? Jogou no lixo? Eu não, muito pelo contrário, desenvolvi o Brasil mais que qualquer outro presidente”.

“Presidente não, ditador medíocre”.

“Presidente!”.

“Ditador corrupto!”.

Nesse momento de fogo entrei eu e Zangado. A sala era grande, e havia muita gente que não percebeu nossa entrada. Mas, é claro, os dois brigões se destacavam. Os dois iam partir para o confronto quando Zangado apartou:

“Ei, ei, calma aí! Temos visita, no mínimo vocês têm que se comportar. Aliás, vocês são dois grandes homens. Quer dizer, pequenos grandes homens. Venham se apresentar para o meu amigo”.

“Macacos me mordam” pensei “não acredito que esse é...”.

“Napoleão Bonaparte, um metro e cinqüenta e sete, prazer” disse o sujeito com uma roupa nada comum, exatamente como nas pinturas.

“E esse aqui é meu colega de quarto, para não dizer inimigo...”.

“Getúlio Vargas, um metro e sessenta, o “pai dos pobres”, prazer também. Não ligue para esse louco, porque nós não somos inimigos, só estamos trocando idéias”.

“Ah é? Vou te mostrar o que é trocar idéias” gritou Napoleão com o punho fechado.

“Não, nada disso” disse Zangado, com autoridade. “Vamos parar com a briga, pelo menos para respeitar o nosso amigo aqui”.

“Que seja, hoje estou sem paciência mesmo” disse Getúlio.

“Então ficamos por aqui mesmo” falou Zangado.

“Foi bom conhecer vocês” eu disse ainda sem jeito por estar vendo Napoleão e Getúlio Vargas.

Saímos da sala estávamos de volta no corredor, exatamente como antes. Andamos devagar, e Zangado estava contando histórias que ele costumava ouvir quando era criança, mas eu nem estava prestando atenção. Estava mais atento aos detalhes das portas. O mais estranho é que antes elas pareciam lisas e brancas, mas se você percebesse bem, havia detalhes muito subliminares, como numa ilusão de ótica. Também percebi que não eram todas as portas que tinham placas informativas, e imaginei que nessas portas estariam aqueles velhos que não querem ser incomodados.

*

Já enjoado da decoração branca do corredor infinito (o chamei de Caminho das Portas Brancas. Criativo, né?), tentei prestar mais atenção no meu amigo anão. Felizmente, ele havia acabado de mudar de assunto:

“Que tipos de música você gosta?”.

“Qualquer uma” respondi.

“Que tal reggae?”.

“Como que é reggae mesmo?”.

“Reggae se resumi em BOB MARLEY, meu irmão!” respondeu Zangado como se fosse um adolescente malandro. Neste instante ele abriu a porta que estava escrito “Artistas – A sensação”.

Era uma sala muito esfumaçada, de modo que não dava para ver seu tamanho. Como pertencia aos artistas, devia ser muito, muito grande. De qualquer forma, eu estava procurando era o Bob. No momento eu até lembrei uma música dele.

“Don’t worry about a thing. Cause every a little thing going to be all right. Tutururutuuu”.

Enquanto entravamos na sala, ficava tudo mais nítido. Á alguns passos da porta que entramos havia uma escrivaninha e uma poltrona de costas para nós. De repente, a poltrona se virou e adivinha quem estava sentado nela. Adivinha! Hein? Hein? Freddie Mercury e seu bigode inabalável. Ele me perguntou umas coisas bem peculiares, que ninguém ainda tinha me perguntado: Como está o mundo? Qual a banda do momento? Aquele velho do Rolling Stones já morreu? Ele me perguntava como se passasse séculos sem falar com ninguém.

Em meio a tantas perguntas eu só fiz uma, bem incômodazinha: Como que você morreu mesmo?

“De AIDS. Ou foi overdose? Já nem me lembro. Maior mancada, a minha. Sério, espero que você não tenha passado por isso”.

“Não, não” eu disse “Eu nunca tive nada de especial pra passar por isso. Você sabe, né, a maioria dos famosos, músicos principalmente (não sei por que) entram nessa. É verdade, não precisa me consolar, eu sou um zé-ninguém mesmo. Fui político ou alguma coisa do tipo de uma cidade por aí no Brasil. Lugar estranho, esse. A gente esquece rápido das coisas”.

“Eu era amigo de um torneiro mecânico” disse eu, retomando aquele assunto “que acabou se tornando presidente do Brasil, acredita?”.

Chegou Zangado apressando a conversa. Me despedi. Conhecer o Mercury completou a falta do Bob. Não dava tempo para procurar mais, porque meu “super-simpático” guia com o nome igualmente super-simpático queria me mostrar mais. Voltamos para o corredor e a partir de agora ele dava muitas curvas. Sem frescuras, eu já estava ficando impaciente:

“Tenho mesmo que fazer o percurso inteiro?”.

“Não, se você quiser paramos por aqui” respondeu.

“Sei lá, só queria saber o que realmente é isso”.

“Então olha pra cima”.

Ai, ai, ai, ai, ai. Era só o que faltava. Era uma pegadinha da tv. Inacreditável. Nunca pensei que poderia ser vítima.

“É uma pegadinha?” perguntei, com a maior cara de bunda do mundo.

“Não, eu juro com minha palavra de anão que não é”.

Ufa! Se fosse eu dava um tiro em todo mundo e ia morar no mato. Olhei pra cima. O teto era muito, muito alto. Não sei como fiquei esse tempo todo sem olhar para ele. Talvez exatamente por ser muito alto.

Era estranho. Pior, era um bocado estranho. Parecia ter umas manchas pretas se mexendo. Dava até medo. Forcei a vista. Parecia...

“Uma letra?” perguntei indignado. “É sim. Veja lá. É um ‘i’. Ali, ó, o corpo, o ponto. Que raios é isso?”.

“Sim, amigo. Eu sei que pode ser decepcionante. Nós somos apenas um conto”.

“Igual conto de fadas?”.

“Qual é? Eu lá tenho cara de fada?” disse Zangado, fazendo jus ao nome. “Então é isso. O cidadão que está escrevendo isso deve estar morrendo de rir da nossa cara”.

“Que saco. Então é isso. O mundo é assim: a história se escreve”.

“Chato, né?”.

“Ainda não estou acreditando. Me belisca”.

...

“Ai! Mongol”.

Athos Krochensko
Enviado por Athos Krochensko em 13/02/2009
Reeditado em 06/11/2009
Código do texto: T1436931