COMÍCIO

para a trilogia do esquecimento

Jamais o apartamento lhe parecera tão grande. O vão entre o chão de tacos de madeira e o teto branco parece ter aumentado. É ausência o que preenche o espaço.

No coração, um vazio. Como o vazio que se sente no estômago quando se tem fome. Bem parecido. Mas é no peito. Lembra já ter tido tal sensação muitas vezes, mas esquecera-se dela nos últimos tempos.

Cansa de chorar e levanta-se do sofá em que permanecera sentada e prostrada por horas, desde que ele de lá saíra, carregando suas poucas coisas e sua já tão conhecida expressão de despedida. Levanta-se e caminha até a janela, com os tacos rangendo sob os pés. Debruça-se no parapeito. É começo de tarde e é domingo, talvez tenha chovido, mas agora o sol bate forte no asfalto lá em baixo. Do sexto andar observa-se um movimento incomum na Rua da Consolação, para aquele dia, àquela hora. Gente com bandeiras e faixas na cabeça, em grupos, em algazarra. Olha para a alegria das pessoas e entristece-se mais. Queria poder sentir o mesmo.

Afasta-se da janela, encara as paredes, os bibelôs na estante, os Lps desarrumados, as muitas fotos pregadas com tachinhas coloridas no mural de cortiça: lá está a cara dele, dezenas de vezes. Mas não só nas fotos. Ele está nos tapetes, nos livros, na cama e no sofá. Está na mesa da cozinha e no box do banheiro. Está nos espelhos. Está em tudo, impregnado, estampado, refletido, manchado, escorrido por todo lugar.

Na pia da cozinha, a torneira que goteja é responsável pelo único ruído no ambiente. Olha o relógio de parede, o relógio com calendário que anuncia a data de dez de dezembro de mil novecentos e oitenta e nove. Mais de dois anos haviam se passado desde a primeira vez que aquele homem ali entrara. Mas agora, com o tempo embrulhado por aquela embalagem de dor, de derrota e de vazio, pela primeira vez, os dois anos lhe parecem vinte. Talvez mais. Pensa em si mesma dois anos antes e sente-se envelhecida.

Vai até o fogão, gira o botão do gás. Suspira. Vê a cara dele e ouve a voz dele. Sobretudo ouve a voz. Parece reverberar dentro do seu crânio. O som da voz, as palavras. Sobretudo as palavras. Coloca água para esquentar e volta para o parapeito da janela. Mais e mais pessoas caminham para o comício. Jovens, velhos e crianças. Muitas crianças, pelas mãos dos pais, outras de colo. Fixa a atenção nelas, o que entenderiam de política? Nada. Mas estão lá, festejando a vida. As crianças, com seus pais. Tantas crianças! Sente um aperto mais doído no peito, chora de novo. Chora de soluçar.

Caminha até o banheiro, encara seu próprio rosto no espelho. Vê o frasco fechado de antidepressivos, o último de tantos, o que resolvera manter intacto, jurando não mais precisar deles, apenas para se lembrar. Lembrar era um esforço. Espanar a poeira de tanta mentira, tanta cafajestagem, tanta filhadaputice para se lembrar do início. Apanha o frasco. Lembra-se do homem que vinha de outra cidade, o homem da história triste, o homem que se abrigara em seus braços, em seu mundo, em sua vida. O homem que se declarara apaixonado muito antes que ela mesma ousasse. O homem dos momentos perfeitos. O homem quase irreal. Recoloca o frasco no lugar. Intacto.

O burburinho da rua aumenta a ponto de se fazer ouvir no sexto andar. A água ferve no fogão. Um café, um cigarro. Palavras de ordem, slogans, hinos, gente acreditando sinceramente em mudanças. Uma mulher acreditando sinceramente no amor de um homem. Por que não haveria de acreditar? A louça empilhada do café da manhã que ela lhe servira poucas horas antes, como sempre o fizera. A torneira aberta, um prato, uma xícara, outro prato. Uma faca, quanta dor. Quantos problemas naquele homem que um dia fora perfeito. Quantas oscilações, quantas dúvidas, quanta inconstância. Outra faca, segura forte pelo cabo. Tanta compreensão ela lhe destinara, tanta paciência. Amava, e se amava não sabia agir de outra maneira. Queria sentir raiva. Sente, mas queria sentir mais. Louças e talheres lavados com raiva. Quanto desaforo. Quantos atrasos, arrogâncias, grosserias. Quanta falta de tempo, omissões, descasos, desatenções, ingratidões, prioridades outras. Um corte no dedo na lâmina de uma faca. Uma gota de sangue dissolvida em água e detergente. Quanta chatice, drama, egoísmo, indiferença. Quanta mesquinharia e intolerância. Quantas verdades sonegadas e quantas mentiras mal contadas, agora pipocando por toda parte.

Louças e talheres guardados. O dedo ferido, o coração sangrando. A torneira, mesmo fechada, continua gotejando. As justificativas, a pior parte. Para tudo, explicações. Para todo ato mau caráter, por mais explícito. Para toda canalhice, por mais evidente. A culpa jamais é dele. É de outro, é de alguém, de alguma coisa. Dele, jamais! São os outros, são sempre os outros! Os outros são mentirosos, fúteis, fracos, superficiais, vulgares e censuráveis. Ele não. Ele gruda a máscara à própria cara e se convence de que é o personagem. Ela não suporta mais. Acabou-se. O pote de açúcar escorrega de suas mãos molhadas, espatifa-se no piso cerâmico.

Num impulso, decide sair. Veste-se rapidamente, não pega bolsa, documentos, dinheiro, nada. Apenas coloca óculos escuros. Fecha a porta do apartamento, o elevador a espera, parado em seu andar. Como pode alguém agir de tal modo e dizer tais coisas e nem de leve notar a própria baixeza? Apenas seis andares, mas parece tempo demais. Falta-lhe o ar.

Pisa na rua e mistura-se às pessoas que ainda passam em alegre cortejo. Sobe alguns quarteirões da Rua da Consolação, até a altura da Rua Sergipe. Atravessa a primeira pista, até o canteiro central. De lá olha para o muro do cemitério. Um ônibus vem subindo, veloz, pela pista da esquerda. Vê uma linda menina, de cabelos cacheados, trajando a camiseta vermelha do partido, no colo da mãe, na outra calçada. O muro do cemitério é branco e a menina está sorrindo e abraça a mãe. O ônibus, veloz, tem a inscrição “Paraíso” no pára-brisa. Um aperto no peito, um nó na garganta. Não vê mais a menina. O ônibus passa. Ela atravessa.

Acompanhando o fluxo de pessoas, caminha pela Rua Sergipe, até a Rua Ceará, Rua Alagoas e, um pouco mais adiante, próximo à Praça Vilaboim, na padaria de esquina, avista um grupo de conhecidos, alegremente conversando. Finge não vê-los. De um bar em frente à FAAP, uma amiga lhe acena, chamando-lhe pelo nome. Simula um sorriso, acena-lhe de volta, finge pressa, segue. Um péssimo dia para encontrar conhecidos e parece que muitos estão ali. Parece que a cidade inteira está ali.

Música, slogans, palavras de ordem, clima de festa, som de muitas vozes. Uma única voz, contudo, parece falar dentro de seu crânio, repetindo, repetindo e repetindo aquelas mesmas frases, com a mesma frieza. Mais alguns minutos e depara-se com a impressionante multidão concentrada na Praça Charles Miller.

No palanque montado na frente do estádio, um político de rosto e voz familiares, mas de cujo nome ela não se lembra, faz um discurso inflamado. Ela se mistura à multidão, mas não muito. Prefere ficar a uma distância razoável de onde o público é mais compacto. Ouve o político bradar por diversas vezes a palavra “mudança” e em outras tantas a expressão “nós já não agüentamos mais”. Senta-se numa mureta, em uma das laterais da praça. Os militantes reagem efusivamente ao discurso do político. Ela gostaria de poder estar interessada por aquele assunto, deveria estar. Mas como dirigir a atenção à política, à sociedade, ao mundo, enfim, sentindo o próprio mundo particular esfacelado?

Uma famosa cantora sobe ao palco-palanque sob aplausos. Canta, dança, faz dançar a multidão. Como é possível uma pessoa mudar tanto? Era a pergunta que ela se fazia há até bem pouco tempo. A artista termina a primeira canção e emenda um breve discurso político, gritando que é chegada a hora de mudar. Não houve mudança alguma, esse é o fato. Houve uma mera interrupção, um descanso, um encantamento. Fora isso que ela lhe provocara. Nada mais. A multidão delira, acredita piamente na mudança. O que ele lhe mostrava agora, nada mais era do que sua face verdadeira. As peças se encaixavam. Tudo ficava nítido. O público acompanha com palmas, braços erguidos, o refrão da canção otimista que fala em “novo tempo”. Ela se encolhe, cruza os braços sobre o ventre. A canalhice passara a fazer todo sentido. Há coesão entre o mau-caratismo desnudado de agora e as histórias que ele lhe contara quando chegou. A multidão delira de alegria e fé. Ela acreditou, por paixão.

Paixão fulminante, entrega, envolvimento. A vida repentinamente lotada de razões. Cumplicidade e planos. Fora mesmo assim? Ou ela assistira uma cena irreal tendo sua própria vida como palco? No palco-palanque um político de outro partido, que recém aderira à campanha, é recebido com certa reserva pelo mar de militantes. Mas fala com tamanha convicção que acaba ganhando a massa e sendo ovacionado. Tanto tempo, idas e vindas, separações e reconciliações. E agora? Lá estava aquele homem habitando seu mundo novamente. Sem que ela nada tivesse feito para isso, voltou porque quis. Deveria, pois, saber o que queria. Foi o que ela pensou. O político jura nada querer para si e nem para seu partido. Afirma estar plenamente engajado à uma causa. Ela, escaldada, esperou um bom tempo para lhe cobrar qualquer postura. Deixou que o tempo acomodasse as coisas entre eles. Mas agora era imperativo, ela precisava saber se tinha um homem em sua vida ou apenas um hóspede em casa nos finais de semana. O político encerra seu pronunciamento, desce do palanque. Ouvem-se aplausos. Mas também alguns murmúrios de desconfiança. Não lhe disse nada, não contou. Apenas passou a lhe mostrar que esperava que a relação deixasse de ter mão única. Bastou. Bastou para que ele esfriasse, se amuasse, se perdesse em contradições e desculpas. Até aquela manhã, até aquelas frases, ditas com desdém, parecendo um pai que nega um presente de aniversário a um filho.

- Eu não vou fazer o que você quer.

Ele deu uma pausa, como que esperando que ela mesma concluísse, completasse o raciocínio e o poupasse do custo de ter que prosseguir. Ante o silêncio dela, repetiu e terminou:

- Eu não vou fazer o que você quer, eu não vou te assumir.

Sim, você não vai “me assumir”, porque simplesmente não é para isso que eu sirvo a você. Você não vai “me assumir”, apesar de você ter voltado para mim pela terceira ou quarta vez. E sem que eu nada tivesse feito para isso. Você veio por que? Para que? Para finalmente “me assumir”? Não! Veio, como sempre, se refestelar na minha vida, se espalhar, se divertir. Veio passar o tempo. Veio usufruir dos cuidados que te dispenso, do prazer que te proporciono. E mais nada. Eu sabia, eu bem sabia! Que esperança idiota essa minha, coisa de mulher! Eu bem sabia que bastaria um mísero sinal de que eu aguardava por alguma atitude, uma cobrança, por menor que fosse. E pronto: lá estaria de novo aquela sua cara de tédio, aquela sua preguiça irritante, aquelas suas mil maneiras dissimuladas e tortuosas para dizer <i>“Eu também tenho que dar alguma coisa? Então não quero ...” </i>Você não vai “me assumir” e nem assumir o que temos e o que somos, pela simples razão de que “assumir” é um verbo que sequer consta em seu dicionário! Você jamais assume coisa alguma. É conhecer a sua vida e notar que o ônus nunca é seu. Você se faz de vítima para esconder que o que lhe falta é ser homem! Então vá! Nem perca tempo com suas justificativas sinuosas porque eu já as conheço. Todas elas. Eu já sei que, de novo, você está indo! Vá e, dessa vez, fique! Quem sabe até você encontre alguém a quem deseje assumir? Alguém mais “adequado”, mas adaptável, mais controlável. Alguém mais dentro dos “padrões”. Alguém com quem você deseje circular por entre seus maravilhosos amigos, quem sabe? E principalmente alguém que não lhe conheça tanto! Que não saiba tanto. Que não fale tanto. Alguém que não conheça a origem espúria dos teus bens e nem os podres da tua família. Alguém que nada saiba sobre quem você realmente é, para que depois você não tenha que lhe convencer do seu enorme “arrependimento” por todas as picaretagens que cometeu na vida por pura inocência. Alguém que lhe compre pela sua imagem, aparência e primeiras impressões. E nada mais. Vá! Saia logo daqui, mesmo que uma parte sua tenha que ficar. Saia!

Pensou tudo isso e disse apenas:

- Você já vai mesmo?

Ele disse ter pressa, alegando compromissos que ela sabia que não existiam. Sua única pressa era a de sair dali e se afastar o quanto antes dela e de qualquer palavra dela que lhe parecesse uma cobrança. E ele tinha um jeito todo próprio de fazer com que ela se sentisse culpada. Mas não dessa vez. Normalmente ela faria de tudo para dissuadi-lo, acalma-lo, seduzi-lo para que ficasse. Tomaria, sim, a culpa para si. Mas não dessa vez. Correria atrás dele até a rua, pediria, choraria, imploraria se preciso fosse. Mas não dessa vez. Esperaria ansiosa até a hora em que pudesse lhe telefonar e o faria, se desculpando, fosse pelo que fosse, ainda que culpas não sentisse. Aceitaria ceder e se adaptar a qualquer condição ditada por ele. Contentar-se-ia com qualquer migalha do seu amor. Mas não dessa vez. Dessa vez, em que ela tinha razões fortes o bastante para prensá-lo conta a parede, não o faria. Olhou mais uma vez para aquela sua expressão murcha e morna, de homem fraco, de homem sem atitude, de egoísta e mimado. Nem se preocupou em procurar algum resquício da criatura em que enxergara tanta virtude um dia. Não lhe diria nada, não lhe diria mais nada. Ele não merecia sequer saber, não merecia saber de mais nada. Apenas deixou que saísse.

A noite já se abatera sobre a praça em festa há muito e a multidão parece cada vez maior e mais excitada. Uma eletricidade de esperança e de alegria parece envolver todas aquelas pessoas. E ela se sente tão absurdamente só, mais só do que já se sentira em qualquer outro momento da vida. O respeitável senador discursa, enérgico. A multidão delira, aplaude, assobia. Crianças ainda brincam no gramado rente à mureta lateral da praça, onde ela se instalara há horas. Brincam, fazem festa, repetem as palavras de ordem ainda que mal lhes conheçam o significado. Um menino menor dorme tranqüilo nos braços de um jovem pai, que o nina cantando um jingle de campanha e com um sorriso no rosto. Ela sente uma angústia maior, um aperto, o ar lhe falta, tem que sair dali. Levanta-se, caminha com dificuldade por entre o mar de gente, tem que sair. Empurra, esbarra, pisa em alguns pés, pede desculpas. Atravessa finalmente a praça e ganha a avenida.

Ela caminha deixando para trás a praça e sequer se vira quando a multidão explode em aplausos e saudações ao ser anunciado o nome de um artista. Caminha pelo canteiro central da avenida arborizada, muito lentamente. Nem percebe que subitamente o burburinho da praça cessa, e cessa por completo, no exato instante em que se pode ouvir os acordes um pouco titubeantes de um violão. Ela não está ali. Está afundada nos pensamentos, no próprio mundo. Não está ali. Nada tem a ver com aquilo. Caminha e caminha. Não ouve nada. Não ouve a voz do cantor.

Já lhe dei meu corpo, minha alegria

Fui tudo o que de melhor poderia ser para você. Você bem sabe. Você jamais poderá negar. Nem esquecer. Do prazer que te dei. Da companheira que fui. Do quanto enfeitei tua vida quando nela só havia cinzas. Porque te amei, no primeiro momento te amei. E por te amar, só por te amar, abarquei com minhas mãos esse teu coração. E tratei dele, cuidei e ninei. Porque te amei e só por isso. Fiz do ato de te amar uma obra diária, esmerada, caprichada. O melhor de mim servido a você numa bandeja. O melhor, nunca menos que isso.

Já estanquei meu sangue quando fervia

Engoli a seco. Esperei. Calei. Compreendi. Tanta e tanta coisa. Achei que o teu amor justificava tudo. Quantas vezes quis gritar, quebrar a casa. Voar no teu pescoço e te fincar as unhas. Mas calei, abafei, suportei. Uma hora a mais, paciência. Um dia a mais, paciência. Uma mesquinharia, uma ofensa, uma mentira a mais. Paciência, paciência, paciência!

Olha a voz que me resta

Está aqui o resultado desse amor! Da dedicada, paciente, ardente, companheira, plena mulher! Tua namoradinha perfeita! Agora está aqui, caminhando para lugar nenhum, com esse gosto de nada na boca.

Olha a veia que salta

Não me calo mais, não mais! Queria poder te fazer saber o que está represado aqui dentro, por tanto tempo. Queria poder te contar que agora que essa nuvem se dissipou, estou te vendo melhor. E estou vendo um fraco. A mentira de homem que você é, que sempre foi!

Olha a gota que falta pro desfecho da festa

Não está faltando mais quase nada, quase nada! Está batendo na tampa. Estou pra explodir. Queria apagar tudo, deixar de existir.

Por favor, deixe em paz meu coração

Agora chega! Não quero mais escutar as tuas lamúrias, nem fazer de conta que entendo teus mil probleminhas. Chega! Não me apareça mais. Não fale, não venha, não pergunte. Principalmente não pergunte! Nada! Você já deixou muito claro que não deseja saber.

Que ele é um pote até aqui de mágoa

Você conseguiu, seu grande estúpido. Tanto fez que conseguiu! Fez esse amor todo virar ao contrário, virar esse desgosto, essa coisa amarga!

E qualquer desatenção, faça não

Não te quero mais, não te quero! O que trago comigo não te pertence, nada aqui é seu. Vou andar sozinha, seja como for. Vou andar longe de você!

Pode ser a gota d’água

Olha só, como eu ando sem você! Olha como eu ando. E pulo. E danço! Tudo longe de você. Você não me toca mais. Em nada você me toca. Nem no meu corpo, nem no meu coração! Não toca, você não toca! O vento me toca, você não! Olha só, olha!

Pode ser a gota d’água

Eu posso andar sem você, eu posso! Olha o vento batendo no meu cabelo, olha! Não tem nada seu aqui, nada! Eu posso andar, posso dançar, posso fugir! Olha o vento como bate! Eu posso até voar!

Pode ser a gota d’água

Sim! Agora eu posso voar!

No dia seguinte, todos os jornais da cidade abriram grandes espaços para a cobertura do mega-comício, que levara milhares e milhares de pessoas às ruas naquele domingo. Trechos dos discursos dos políticos foram reproduzidos, entrevistas foram publicadas. Inúmeras imagens das apresentações de artistas foram estampadas. Colunistas das mais diversas tendências comentaram o evento e analisaram em profundidade os rumos daquela campanha política.

Contudo, apenas dois ou três noticiaram, em poucas linhas, a morte trágica de uma mulher não identificada, cujo corpo fora encontrado a cerca de um quilômetro e meio do local do comício, ao cair do Viaduto General Olímpio da Silveira, sobre o asfalto da Avenida Pacaembu. Segundo informaram os jornais, não havia até aquele momento, nenhuma informação que tornasse possível afirmar que a morte fora resultado de acidente, crime ou suicídio. Nenhuma testemunha se manifestara.

E apenas um jornal mencionou que, segundo exame preliminar realizado pela perícia, havia indícios de que a morta possivelmente se encontrava no início de uma gravidez.

Nunca mais o fato foi mencionado.

NOTA:No dia dez de dezembro de 1989, foi realizado na Praça Charles Miller, em frente ao Estádio do Pacaembu, o último comício da campanha do então candidato Luís Inácio da Silva à Presidência da República. Eram as primeiras eleições diretas para presidente, depois de quase três décadas e os comícios provocavam imensa mobilização popular. O número de pessoas presentes àquele evento, foi estimado em mais de quatrocentas mil.

O “showmício” durou praticamente o dia todo e contou com a presença de políticos de vários partidos que, no segundo turno das eleições, aderiram à campanha do candidato do Partido dos Trabalhadores. Estavam lá, entre outros, Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso, Leonel Brizola, Roberto Freire e Miguel Arraes.

Os discursos dos políticos foram intercalados por apresentações de muitos artistas, desde anônimos até estrelas conhecidas. O último a se apresentar foi Chico Buarque de Hollanda, numa aparição surpreendente (sua presença não fora confirmada até momentos antes dele subir ao palco). Sozinho, acompanhando-se apenas de seu violão, Chico cantou uma única canção – “Gota D’Água” – e causou uma verdadeira catarse, ao, de forma inacreditável (e inesquecível), silenciar completamente a multidão.

Uma semana depois, Luís Inácio da Silva receberia 31,1 milhões de votos, sendo derrotado por Fernando Collor de Mello, que com pouco mais de 35 milhões de votos, foi eleito Presidente do Brasil.

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