O pedido

 
- Pode deixar que, apesar do peso da caixa e da minha idade, eu mesma a carregarei para lá - disse dona Eunice, tentando erguer uma pesada caixa de ferramentas, num canto da área de serviço.

À mesa, folheando o jornal, o filho permaneceu inerte.

- Está pesadíssima! Mas minhas forças, embora consumidas pela idade, pelo tempo, pela vida dura que tive cuidando dos meus filhos, ainda assim, minhas forças a vencerão! - e gemia dolorosamente com o esforço. - Ah!, meus filhos, minhas forças lhes foram devotadas até a exaustão!

O filho, no entanto, cego à dor materna, limitou-se a virar a página do jornal e beber um pouco do café; sequer levantou seus olhos para observar o que fazia sua mãe.

Supondo que uma mosca – uma que voava por ali, pousando nos grãos de açúcar espalhados na mesa -, supondo que ela pudesse ler, e que depois de ler, ousasse nos relatar o que entendeu, saberíamos por ela, a mosca, que a matéria lida pelo filho de dona Eunice tratava do longo porém justificável conflito decorrente da criação de Israel. A batalha do outro lado do mundo lhe era mais atraente que a da própria mãe; isto pensou a mosca, porque o narrador é menos moralista e não julgará a personagem por qualquer desatenção filial; ou melhor, o autor até possui suas opiniões, mas prefere deixar que o prezado leitor desenvolva livremente as suas.

- Ai! Senhor, me dê forças! Ah, isto me lembra a pior dor do mundo: isto é como parir! - sussurrou dona Eunice, num sussurro audível, é claro.

E continuava, com o cenho encrespado, o corpo arqueado, o rosto vermelho e a respiração ofegante, lutando para mover o maior obstáculo da sua jornada: a caixa de ferramentas.

É verdade que motivos - motivos claros, fundamentados - não havia para mover o bendito caixote, mas, mesmo assim, Dona Eunice volta-e-meia cismava com o lugar das coisas e as trocava de lugar. Nada lhe era tão prazeroso como colocar a coisa certa no lugar certo; afinal, um móvel fora do lugar era capaz de lhe tirar o sono.

O filho, apesar da saga da mãe, não tirava os olhos do jornal.

- A idade, ah!, a idade! Ela chega para todos - continuava dona Eunice – a idade ou a morte! Que opções nos restam? Talvez, a morte seja mais agradável, pois a velhice, eu sei porque a conheço, é horrorosa, principalmente quando se é só! E ofegava. – Gilberto, meu filho, você acha que se deu der um trocado ao Zezinho, ele vem me ajudar aqui?

- O quê, mãe?

- O Zezinho, meu filho, você acha que vem me ajudar com a caixa se eu lhe pedir?

- Vem, sim, mãe, vem, sim... – disse o filho, com os olhos cravados na folha.

- É... Hoje tudo se compra. Melhor pagar que pedir, mesmo. A família, a amizade, a boa vontade pereceram, foram-se os bons tempos!

Minutos depois, a mãe, no interfone:

- Zezinho? Quando você tiver um tempinho livre, poderia subir até aqui, por favor, pra me ajudar? Então tá, ‘té logo!

Zezinho subiu, entrou, e, em menos de dois minutos, carregou a caixa pro canto indicado por dona Eunice.

- Taí, dona Eunice! A caixa agora tá de novo onde estava há uns dois meses, não é?

- Sim, Zezinho! Mudei daquela vez, mas vi que o lugar antigo era mesmo melhor.

- Era só isso que a senhora queria?

- Sim. O que pra você é fácil, pra mim é um tormento! A idade, os anos! Você um dia se lembrará de mim, quando chegar à velhice... Toma Zezinho, obrigado!

- Não, não posso aceitar! Por uma besteirinha dessa, cinco minutinhos - não vou aceitar nada! – disse Zezinho, recusando o trocado oferecido, sem, contudo, sair do lugar.

- Faço questão. Sua boa vontade merece recompensa – rebateu dona Eunice, colocando nas mãos do ajudante o dinheiro.

- Ah, Dona Eunice, só a senhora mesmo pra fazer um agrado por tão pouco... Obrigado, obrigado – agradeceu, recuando em direção a porta.

A mãe, após fechar a porta, perguntou, pesarosa, ao filho, que ainda lia o jornal:

- Por que não me ajudou, meu filho?

- Você em algum momento me pediu?