Ladrão que rouba Ladrão (Um conto açoreano)

LADRÃO QUE ROUBA LADRÃO (conto em duas partes.)

Conto sobre como os açoreanos chegaram em Itapuã-Viamão, baseado no roteiro teatral de mesma autoria.

Carol Garcia- atriz viamonense.

Corria, até não poder mais. Em certos momentos, sentia os pés baterem nas nádegas.

-Pega ladrããããão!!!

E Fernando corria do grito que ecoava pela ilha afora. Maldita fome que o forçava a roubar para comer. O quitandeiro corria também, atrás da única maçã roubada.

O homem chegou a pensar que acabaria no mar, e ainda assim o quitandeiro nadaria em perseguição. Porém, algo o parou antes: uma mulher caíra aos seus pés, após uma topada estrondosa de frente com ele. Atrás dela, uma multidão de outras, lideradas por uma imensa, em tamanho e peso, com paus na mão, bradavam palavras que corariam as faces de um estivador.

-Por favor...-tentou gritar Fernando, mais alto que as gralhas.-... que dê a primera paulada quem nunca pecou...

E logo atrás, o quitandeiro, ofegante:

-Pe...ga ...la...drão !!!

Não deu outra: a turba veio de frente.

-Carolas!-Rosnou o ladrão,colocando a mulher nos ombros.

Embora correr com peso fosse difícil, ninguém conhecia as vielinhas da Ilha Terceira melhor que ele. Diapersou os perseguidores, e subiu a colina que dava na gruta que chamava de lar. E a mulher reclamou e gritou, até chegar lá.

-Pois estás a enlouquecer??? Como vais pegando-me assim? Amarrotaste-me toda!- A mulher se ajeitava, furiosa.

-Que mal educada! Oras, rapariga, deverias estar agradecendo-me por carregar este peso todo assim, à correr!- Ele ofegava.

- Oh, que horror! “esse peso todo”?! Como falas assim de uma dama?

-Uma dama não precisa correr daquele jeito a fugir da mulher do vizinho...

-Pois está! Vou-me embora! Obrigada! Sei cuidar-me sozinha!

E mesmo hesitante, ameaçou sair da gruta.

-Até mesmo da Carlota “Arranca-Toco”?

-A conheces?

-Não diretamente. Mas o Henrique, marido dela, conheço. E a ti também, Luiza.Aceitai meu abrigo, porque se ela te pega, te mata.

-Só por essa noite.- Ela estava atônita.

-Por mim, pode ser o tempo que precisares....seja bem vinda!

-Moras aqui nesta... caverna?

-Escondo-me aqui. Vem, vamos comer.

E ele tirava de dentro do casaco um pacote, que ao abrir exalou um forte cheiro de peixe. Luiza fica pálida, enjoada, acabando por vomitar.

-Mais me sobra.-Ele dava de ombros, comendo de boca cheia.-Ah! E isto não é uma caverna! É gruta.O Henrique falou-me do teu gênio difícil. Sei que és apressada, mal educada e arrogante. Mas pelo menos inteligente.-E vendo que Luiza não parava de vomitar: -Queres parar??? Desse jeito vais perder as buchadas todas!!!

Podes ir colocando tudo para fora! De onde conheces o Henrique? Qual teu nome?-Ela estava fraca.

- Fernando Fraga, criado teu. E... não quero magoar-te.

-Depois do que aquele excomungado do Henrique fez-me, nada mais magoaria-me.

-Bem... Henrique e eu somos...colegas de mesa. Como posso explicar... já ouviste falar em truco?

- Henrique joga truco???

-Se joga, eu não sei, mas que esconde as cartas muuuuito bem... ah, esconde!

-Agora só falta dizer que ele bebe!

-Beber? Tem muito pouco sangue naquele vinho.

-Não estamos a falar do mesmo Henrique!

-Estamos! Henrique Gutierres. Um tipo alto, de boa aparência; casado com a Carlota “Arranca-Toco...”.

- ...e herdeiro das terras do pai, na cidade do Porto!

-Pai? Nem sei do que aquilo foi gerado! Olhai: ele contou-me sobre vocês.Creia em mim: ele só não queria o que há muito não tem com a Carlota. E com uma moça bonita e rica...

-A Carlota é rica?

- “Tu” és rica.

-Não! Nunca fui! Disse isso só para... para... igualar-me a ele, e por fim, viver sustentada por ele.

-Henrique não tem nada. Porém, se passa por bom por prestigio. A mulher dele peregrina mais que Bandeira do Divino, de taverna em taverna, tentendo convencê-lo a pegar uma enxada... e nada.

-E quando ele viu que viraria um peso; deu um jeito de a mulher encontrar-me com ele. Calhorda.

-E por que virarias um peso?

-Porque... por favor... estou muito cansada.

-Pegai esta coberta.

Fernando retirou de um canto uma coberta que amontoada parecia uma pedra, e aconchegou Luiza. Sentou-se ao seu lado e ali ficou, velando seu sono, durante toda a noite.

Acordara sentindo-se um pouco melhor. Dera falta de Fernando, mas distraiu-se ao observar as múltiplas formas que as pedras davam à parede da gruta. Logo ele chegou, com uma trouxa em mãos:

-Dormes bastante, não? Trouxe o desjejum.

-No que trabalhas, para vir sempre com comida pronta?

-Furtos. Pequenos furtos. Não tenho paciência para planejar golpes. Sou o que podem chamar de “ladrão de galinhas”.

-Não acredito!-Luiza gargalhava.- Vim parar nas mãos de um reles... “ladrão de galinhas”?

-Se eu fosse tu, uma moça indefesa, não riria. Vim de Lisboa, depois que a guarda me pegou.

-Eu também! Vim de Lisboa. É réu primário?

-Não!-Ele inflou o peito e agravou a voz.- Vim para a Ilha Terceira porque ninguém mais suportava-me em Lisboa! Quando me capturaram com um porco de estimação do governador geral sendo escaldado para assar...

-Especialista em roubo de animais...

-Ah! E eu lá ia saber que era de estimação?

-Vim com quatorze anos. Quando tinha doze, matei meu padrasto. Acredita que ele esperou minha mãe doente morrer para tentar desposar-me a força? Pois dei o troco: deitei na cama dele e cortei-lhe as tripas. Ficou agonizando na minha frente.

Os olhos dela davam medo. Fernando murchou.

-Bom... encontrei o Henrique, hoje.

-Dane-se. –Dera de ombros, mas logo ergueu a cabeça.- Onde?

-Dane-se!-ele repetiu o gesto dela.

-Fala!- O tom era ameaçador.

-Estava com a Carlota. Vão para o Continente.

-Como???-Quase gritou após um engasgo.- Ele não a ama!

-Isto é o que ele te diz. Luiza, existem pessoas que não satisfazem o ego com um amor apenas. Além disso, Henrique e Carlota são um casal jovem e sem filhos, como os que estão pedindo para colonizar o novo Continente. Ele não vale a pena.

-E quem vale? Tu?

-Não disse isso. Mas como o Henrique embarcaria num navio contigo?

-E o que tenho de errado, Fernando? Só porque não fico trancada numa casa fedendo a bacalhau, sovando pães como uma escrava? Conheço a alma dos homens. Vocês roubam todo o frescor da nossa juventude; depois nos aprisionam. Servimos para cozinhar e parir os filhos que fazem em nós. As outras mulheres daqui, todas as açorianas, que tem como caminho a estrada da igreja para casa e vice-versa não conhecem os prazeres da vida. Mas eu... eu sou diferente. Eu não sou usada e hei de juntar-me com um homem bem rico e vestir as meias de seda mais finas... as roupas da cambraia mais macia. Os perfumes mais caros. Tenho asco dos homens. São apenas os degraus do meu desejo. Pergunta se me prostituo? Passei muita fome ao lado da minha mãe. E quando matei aquele porco que babava em cima de mim jurei nunca mais sentir a tal fome. Se isso é prostitução: usar roupas coloridas e decotadas, ser ambiciosa e sobreviver a qualquer custo; então sou uma prostituta.

-Será que a vida delas não é mais fácil?

-Cheira-me. Vês a lisura das minhas mãos? Sou como uma flor que desabrocha todos os dias.-Ela envolvia o corpo dele com o seu, e o perfume dela realmente era inebriante como o de uma rosa amanhecida.Nem parecia que havia dormido e acordado há pouco.-Mas tu não me interessas. Bebo apenas os melhores vinhos e uso os melhores produtos de beleza... –E empurrou o homem que já estava quase tonto.- E dá-me licença, pois procurarei alguém para me sustentar-me no navio. Também vou ao Continente.

-E de onde Henrique traria tudo isso?-Fernando estava no chão. Recuperando-se do devaneio.

-Da herança do pai.

-Mas esta não existe! E sabes que não há muita riqueza em Açores! Os homens ricos são assim...- E esfregou os dois dedos indicadores.-...com a guarda da coroa. Vão te pegar logo,logo. Vai acabar virando uma fugitiva, escondendo-te como eu.

-Este tal novo Continente é a América?- Ela atentou-se.

-E fala-se em outra coisa?

-Não é apenas isto, meu caro. Terra nova é terra sem lei. Notaste que há pouquíssimo tempo a guarda lusitana reparou em nossa Ilha Terceira? Até que eles percebam que estou levando as bolsas dos meus homens, e tu, tuas galinhas,já estarei rica e em Portugal novamente. E o melhor: o Henrique terá derramado uma gota de sangue para cada lágrima que derramei por ele!

-Mas não podemos ir, não somos...-Repentinamente, Fernando deu-se conta da expressão de maníaca de Luiza.-Não me venha! Nada tenho para dar-te! Estão levando apenas casais!

-Ora! Deixai de ser ingênuo! Só precisa dar-me teu nome! “Luiza Fraga”, um primor de combinação! Seremos casados... até desembarcar do navio, é claro. É o preço, meu filhinho... tu terás que mentir e eu... agüentar o estrupício que tu és.

-Bem... parece boa idéia. Pelo menos não precisaremos escondermo-nos de ninguém mais.

-E mais:lá, seremos dois desconhecidos. Desembarcamos e nos separamos. Fechado?

-Fechado! Mas, primeiro, terás que parecer uma açoriana comum.

E a partir daquele momento, Fernando ensinou Luiza a ser uma mulher de família, a saber desde cozinhar até rezar.

Era uma fria manhã de janeiro. O vento arrepiava cada pêlo de seus corpos. Não apenas o vento. A angustia de abandonar uma vida, em desgraça ou não, para trás, e deixava cada um dos passageiros daquele navio com os nervos à flor da pele. Mas haviam dois, não especiais, nem diferentes, que carregavam em suas almas dois pesos: um, o da fuga, o outro, o da sede de vingança.

No ano do Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e quarenta e dois, pessoas abandonavam tudo que haviam construído em busca de novos sonhos e conquistas.

As casas já criavam diversos andares nas ruas apertadas do arquipélago de Açores. As crianças que nasciam tinham de dormir na cama dos pais, por falta de espaço para seus bercinhos.

As erupções vulcânicas e os terrenos acidentados formavam obstáculos quase intrasponíveis para as plantações que precisavam ser maiores, e nem todos os açorianos eram agricultores. Embora a maioria fosse recatada, católica e decente, haviam Fernandos e Luizas o suficiente para preocupar a coroa portuguesa.

O Tratado de Tordesilhas era em linha reta, e o Rio Grande do Sul, espanhol. Porém, os portugueses tinham as entradas e bandeiras. Quem guardaria as terras invadidas, assim como os campos de Ibiámon? Os espanhóis e portugueses passavam o tempo todo brigando por terras organizando invasões...mas os primeiros não teriam coragem de atacar mulheres e crianças vindos dos segundos...ou sim?

Neste mesmo ano, aportavam, no Porto dos Casais e em Itapuã, os casais escolhidos para tal missão, disfarçada de colonização; tendo em mãos o pouco, o muito e o nenhum: poucas ferramentas para trabalho, muita esperança e nenhum lar, apenas a mata atlântica e virgem da nova terra.

Caroline Garcia Cruz
Enviado por Caroline Garcia Cruz em 31/03/2009
Reeditado em 17/04/2009
Código do texto: T1515073
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.