O KARMA DE MOUNA

O KARMA DE MOUNA

No primeiro semestre de 2003, quando os Estados Unidos da América, Reino Unido e outras nações invadiram o Iraque, grande parte do povo refugiou-se na Síria. Entre aqueles que fugiram da sua terra ocupada estava a família de Mouna, que na época tinha dezessete anos. Ela era uma garota devota, usava o hijab e se levantava cedo todas as manhãs para fazer as orações, antes de ir para a escola. Ficaram em Bagdá, sua cidade natal, todas as lembranças da sua infância e no peito a dor por tê-las que deixar pra trás.

O seu pai não conseguiu emprego e vivia de biscates. Em alguns locais onde foi pedir trabalho, lhe disseram que poderiam aceitar a filha dele para ser dançarina. Ele sabia que as jovens que dançavam nos cassinos (chamavam de cassinos, apesar de o jogo ser proibido, mas eram antros de prostituição) acabavam se transformando em prostitutas. Ele comentava a respeito com a mãe dela e apesar de tentar esconder, Mouna ouviu várias vezes. Ela chegava a estremecer diante dessa possibilidade. Como poderia o seu corpo intocado servir para a satisfação sexual de homens bêbados de todos os tipos? Ela preferia morrer a ter que se submeter a isso.

Para agravar a situação, o seu pai ficou muito doente. Sua mãe dizia que ele adoeceu pelo desgosto de não conseguir manter a família e preocupação pelo futuro de sua mulher e filha. Ele não tardou a falecer e a situação piorou muito para elas, que começaram a passar privações. Hiba, a mãe, alegando que não tinha mais nada a perder, juntou-se às mulheres da rua, com o firme propósito de manter, pelo menos, a honra da sua filha. Mas o seu corpo já não tinha os atrativos que pudessem lhe render o sustento de ambas.

Sem perspectiva de vida, as famílias de refugiados que têm moças, sem terem outro meio para se sustentar, acabam sendo forçadas a entregar suas filhas para o comércio do sexo. Assim, no centro de Damasco, é comum os homens serem abordados por mulheres. Também, não raro, o pai ou a mãe oferecer suas filhas menores.

Até a estrada que leva ao Convento de Saidnaya está cheia de prostitutas iraquianas. As casas noturnas se aproveitam da situação e apresentam shows com características iraquianas e é esse ambiente de prostituição que mantém as famílias por conta do trabalho dessas meninas, porque são elas, na maioria das vezes, que levam dinheiro para casa, à custa de venderem o corpo na prática da prostituição.

Não tendo outro recurso para o sustento de sua família, Mouna se apresentou em um cassino para dançar e no primeiro dia teve que se entregar ao próprio cafetão, por exigência dele, para continuar no emprego. Triste fim da sua virgindade, perdida para deleite daquele monstro, que se aproveita da fraqueza das mulheres refugiadas. Não teve coragem sequer de abrir os olhos. E as lágrimas provocadas pela dor lancinante causada pelas estocadas violentas na sua vagina despreparada, escorreram pelos cantos, enquanto procurava livrar, pelo menos a boca, do bafo fedido de álcool de arak barato e de cigarro. Todos os seus sonhos escorreram pela água que lavava, desde então, a sujeira dos homens nojentos que pagavam pelo prazer de usar o seu corpo pra satisfazer seus desejos animalescos. Mas era o único meio de se manter e à mãe, que também não tardou a morrer, de desgosto, como o pai, por ver a sua filha querida, para quem sonhara um futuro decente, com um bom marido e filhos, naquela vida mundana, sem casa, sem pátria, sem alegria, sem vida e sem honra, sem nada.

Vendo sua vida e todas as suas ambições de menina dedicada aos estudos serem destruídas, não se conformava em ter empregado o seu corpo como meio de sustento por causa dos soldados que invadiram a sua terra, obrigando a sua família a se refugiar em outro país. Além da humilhante provação e da desilusão de Mouna, dela adveio a doença provocada pela imundície dos homens e, com ela, o ódio por aqueles que lhe tiraram o direito de viver na sua linda Bagdá, de sentir o perfume e o sabor das tâmaras. Ela estava determinada a voltar ao Iraque, nem que fosse rastejando e, sozinha, com um propósito em mente: disseminar a doença maldita que adquiriu entre aqueles que iniciaram a derrocada de sua família, provocando a destruição dos seus sonhos, o desmoronamento da sua honra e o desgosto pela vida.

E assim fez. Usando sua beleza e o corpo bonito era fácil atrair os soldados carentes de sexo e de afeto, longe de sua terra, de sua família, de suas mulheres. A sua fama se espalhou como amante perfeita, que fazia sexo porque gostava, tinha prazer em fazer aquilo, ninguém duvidava, tal a maneira dócil que empregava e no falso carinho que dedicava a qualquer um. Fazia questão de usar preservativo para afastar qualquer suspeita até que o parceiro confiante na segurança que ela demonstrava, incitado por ela, deixava que ela retirasse, sob a promessa de maior prazer, quando não, rasgava o utensílio sem que percebessem.

Não faltava homem em sua cama, comprando passagem para a morte, para o inferno, como ela pensava, depois de cada um que se satisfazia usando o seu corpo, antítese do que ela sussurrava ao ouvido dos amantes, alegando que estava chegando ao paraíso. No auge do prazer simulado, o gosto da vitória, dissimulado. Foram centenas de homens, alguns jovens ainda, como ela, que deixou à beira da morte.

Mas nem tudo acontece como se espera. Ela conheceu um soldado extremamente carente que conquistou o seu coração. Com ele, ela utilizava todos os meios de proteção. Ele se apaixonou por ela e prometeu que quando voltasse para a América iria levá-la com ele, tinha, inclusive, comentado com seus pais, em carta recente, que estava namorando uma bela Iraquiana. Sua coleção de latas de batatas PRINGLE já contava vinte, porque sua mãe todo mês lhe mandava uma. Era a única recordação de Plowville, no Estado da Pensilvânia, sua cidade natal.

E o seu ódio foi dando lugar à compreensão de que aqueles soldados, que estavam lá longe de sua terra, de suas famílias, alguns garotos ainda, também não tinham culpa da estupidez de outros. E se arrependeu de ter passado para muitos deles o vírus da morte.

Como ele havia prometido, após ter sido atingido por estilhaços de uma bomba caseira que explodiu próximo a ele, retornou para casa e, não tardou, conseguiu buscá-la em Bagdá, para viver com ele como esposa e foram felizes, enquanto resistiu com vida pela falta de imunidade, após terem iniciado uma nova família cujo terceiro membro ele não chegou a ver.