A mão herdada.

O clima estava seco e acentuava a sensação de aridez que o consumia, após duas horas diante do teclado não havia um parágrafo aproveitável para aquele conto inóspito, deserdado da sua inspiração.

Inicialmente era apenas uma idéia que se fundava num vagar, que ao encerrar-se nas próprias voltas, foi fechando passagens para as sondas da imaginação. Agora a prosa estacava numa tortura que desfigurava qualquer prazer que escrever pudesse proporcionar. Havia os prazos e seus juízes, faltava ainda aquele conto desgraçado, totalmente estruturado na sua cabeça que se negava à materialidade da escrita.

As persianas estavam cerradas vedando qualquer dispersão por influência externa, o telefone desconectado abortava mesmo as ligações de urgência. Faltava, porém a centelha daquela vazão que já produzira inúmeras laudas numa única noite e que agora parecia estéril inatingível e oca.

Lançou seu olhar para o rascunho esquemático que produzira previamente, as idéias estavam todas lá, o perfil da sua protagonista, as ações sendo conduzidas pela tensão da cena ao redor, a agonia das intenções sem governo, estava tudo delineado em forma e emoção; por que a resistência em submeter-se ao papel?

A cabeça já começava a latejar, o tempo para finalizar e revisar sempre fora curto, mas sua disciplina prevalecia sobre as questões de análise, no entanto, a situação mostrava-se ameaçadora, todos os prazos estourados, pressão do editor, o esgotamento do adiantamento que financiava seu esforço literário...

A ex-mulher já não preocupava tanto, o síndico tornou-se um incômodo longínquo como tudo que não se relacionava aquele conto. Assim esgotado com a ansiedade que a situação se alimentava ele tomou um analgésico, deitou-se no sofá e adormeceu um sono agitado.

Viveu um sonho como um conto de Poe e sentiu as garras do fantástico esganando, sufocando de uma forma tão real que acordou zonzo meio a escuridão, tomado de suor e náuseas com a pulsação acelerada. Foi à cozinha e tomou um copo d’água, a seguir foi experimentando uma serenidade que jamais julgara existir.

Aproveitou o momento e sentou-se diante do computador e por cinco horas a fio martelou as teclas, cortou e revisou todos os contos e finalizou dois ensaios que jaziam abandonados nos confins de um arquivo qualquer; abasteceu a impressora e imprimiu seu mais novo volume, que pretendia tornar popular o que a crítica especializada chamava de talento promissor.

Ainda sentindo as torrentes de energia que atravessavam seu corpo como um dínamo seguiu para o banheiro, dirigiu-se ao lavatório e lavou as mãos num tributo ao esforço realizado, havia uma reverencia neste ato, era um feito extraordinário que ocorrera naquela noite, toda inércia transformada em criatividade, de uma forma abrupta e sofisticada.

As mãos pareciam ter um propósito maior que os esboços superficiais que eram utilizados como roteiro para seus contos. Aqueles últimos textos excediam a sua própria gênese e o confrontava como um antagonista.

Nada disto tinha importância era uma questão para outro momento; da mesma forma como o frenesi se instalou, foi cedendo a uma fadiga que o levou ao quarto e só cedeu ao meio-dia do dia seguinte.

Enquanto tomava café corria os olhos pelo conto terminado, lia com a curiosidade de um texto desconhecido, não reconhecia nenhuma das ações de sua heroína, a narrativa não registrava seu estilo e esta sensação começava a inquietá-lo. Ligou para o seu revisor que chegou logo a seguir, pois sabia da urgência na remessa dos originais.

Conversaram sobre as dificuldades do livro e sobre os eventos da noite anterior, o revisor apressou-se em uma primeira leitura do último conto, era um conto curto como era comum nestes tempos de leituras ligeiras e leitores impacientes.

Depois de vinte minutos de leitura o revisor se mostra impressionado com a qualidade do conto e com a revisão impecável do escritor, mas confessa não reconhecer o estilo narrativo, a fluidez da prosa no conto que terminara de ler. Observou ainda a fuga da arquitetura tradicional de estruturar a narrativa num ambiente emocional descrito por um narrador isento.

Esta é a última memória que ele ainda conserva daquele momento, quando a angústia de ser ou não escritor o conduziu para uma carreira de reconhecimento e sucesso. Todas as noites antes de dormir ele se lava, reverenciando as mãos herdadas de algum escritor.