Manambua*, o exilado

Despertava sonolento e bocejava. Era a vovó Janny que chamava? ... ou teria sido um sonho? Não, era mesmo ela. Que fosse lá, querido, que sentasse ali ao lado dela, que visse o que ela, a vovó, tinha feito. Que beleza! Um agasalho novo, que deixasse ver se ficava bem ... Calma, a direita ... Não, não, a esquerda não, bobinho... que começasse pela direita ... sempre trocava uma pela outra, quieto um minuto ... Perfeito o contraste do vermelho com os caracóis louros! Que beleza!

Era o casaco de lã vermelha que ela acabara de tricotar. Se tinha gostado? Não sabia dizer, era tão pequeno. Mas, se ela dizia que estava perfeito, que ficava muito bem ... Macio, confortável, sem dúvida, ia ficar quentinho e protegido quando chegassem os dias mais frios. Depois ajudava-a ou atrapalhava na arrumação dos novelos de lã vermelha que sobraram na cesta grande no chão. A agulha não, não era brinquedo, ela ralhava em voz mansa. Que sentasse ao seu lado, que a Vovó ia tomar um chá. Que provasse o biscoitinho de areia. Já tinha tomado o leite? Não? Então tomasse logo antes que ficasse frio, Estava muito elegante para o chá das cinco o diabinho vermelho! Você é lindo, sabia disso?

Sabia sim, porque ela sempre dizia. Aqueles biscoitos eram uma delícia, e a vovó, a essência da vida. De um só pulo, correra atrás da bola enquanto a vovó regava os vasos da varanda.

Recordava a bola amarela grande demais que sempre perseguia e lembrava-se bem do dia em que ela se embrenhara num tufo de plantas altas. Um segundo depois de ter mergulhado nas plantas para buscá-la, estava de volta gritando de dor com as ferroadas das formigas africanas. Um turbilhão de lembranças tomava conta de tudo como as formigas tinham feito no jardim sem que ninguém tivesse percebido. A Vovó puxando o casaco vermelho novo, sacudindo tudo, já tinha passado, já tinha passado, ela dizia.

No colo da vovó, pudera espreitar e ver melhor o estrago que as centenas de carreiros de formigas devoradoras tinham feito. Arrasada toda a vegetação dos terrenos baldios vizinhos, avançavam na direção da casa. Para lá das licônias, dos hibiscos e dos bambus de quintal, vários formigueiros tinham-se alastrado por toda a parte da noite para o dia.

Impressos na memória, estavam ainda os gritos da vovó, que sacudia as pernas crivadas de formigas negras, fugia, cambaleava até a varanda, arrastava-se até o telefone. Ela parecia abalada e sem forças quando uns homens vieram e a levaram correndo. A vovó tinha dito que voltava logo, querido, voltava logo, mas não viera. Um dia, três, quatro. Na vizinhança, silêncio absoluto, só o som do mar sobrevivera, marés subindo e vazando. Desde o fundo da casa, pelas varandas, paredes e muros, as formigas avançavam também em marés negras, tomavam tudo. Acuado no portão entreaberto, o pânico foi o empurrão para o mundo. O medo faz dos pequenos, vovó sempre dizia, verdadeiros gigantes. Olhando melhor, aquele oceano era já um mar, um lago nada mais.

Lembrava vagamente o que viera em seguida. Novo mundo, gente estranha que, com voz diferente, fazia perguntas e dizia as mesmas palavras quase com a mesma paixão, Tão pequeno! Estava com fome? É claro! Que bonito que era! Calma, agora já não estava sozinho, calma. Estava tudo bem.

À hora em que o sol se põe neste jardim calmo que lembra o original, sentado junto ao portão, sigo distraído o movimento da rua. Levado pela brisa morna do leste que brinca nos meus caracóis louros, ainda vôo longes céus, velejo lagos, mares e oceanos, minhas longas orelhas abertas em asa em ventos cheios de vozes antigas e persistentes. Entre elas, um murmúrio nítido vem e me abraça: B-ó-g-u-u-u-s! Bógus, diabinho da Vovó, você é lindo, sabia?

Ponta Porã, maio 2005

* manambua (dialeto africabo chisena) = cão, cachorro

Anabela Bingre de Négrier
Enviado por Anabela Bingre de Négrier em 20/05/2006
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