VÃO ASSAR O VOVÔ

Meu avô tinha um cavalo, como todo o mundo na roça tinha ou tem. Era grande, marrom escuro, brilhoso e foi comprado de um lugar muito longe chamado Murineli. E assim ficou conhecido.

Não é que meu avô fosse lá um grande cavaleiro, pelo contrário, mas quando montava, fazia uma pose bastante impressionante: segurava com a mesma mão esquerda a rédea e o cipó desejado apoiado no ombro esquerdo, lembrando aquela figura do soldado marchando com o fuzil. E, na realidade, ele ia todo empinadinho, braço direito pendendo preguiçosamente ao lado do corpo. Geralmente não precisava nunca açoitar o Murineli e nem tão pouco encostar as esporas. Era um cavalo de grande calor, arisco.

Quem era cavaleiro e se considerava bom na arte tinha de ter um par de esporas Grentina. E com o cachorro reto. Era o supra-sumo. Como navalha Solingen, canivete Roger, revólver Smith & Wesson ou o fumo de rolo feito pelo Pedro da Luciana! Nem que fosse só para ficar cheirando! Bom d-e-m-a-i-s!

Pois um dia vovô apareceu com um par das esporas tão almejadas. Não achei nada muito diferente, mas não era suficiente doido para dizer. Realmente, algumas possuíam um arame enrolado que passava por debaixo da sola das botinas. Aquelas não! Existiam duas correias feitas de um couro avermelhado, costuradas com uma linha amarelo-claro bem na beiradinha e desenhos feitos em baixo relevo. A segunda correia era passada por cima do bota e presa numa pequena fivela toda enfeitada de coisas que não me lembro.

Seguramente eram de segunda mão, pois as rosetas estavam bastante enferrujadas e meu avô achou-as pequenas e com poucos bicos. Ia trocá-las por outras que ele mesmo e o compadre Zé Mafada fariam na oficina, logo ali perto da porta da cozinha.

E foram para lá executar o trabalho. Meu avô era muito nervoso, agitado, ansioso demais e queria fazer tudo depressa, correndo e isto ocasionava alguns contratempos para ele. Mas o compadre Zé já o conhecia bem, trabalhavam juntos há muitos anos. Eu ainda era pequeno e não deveria ficar lá, pois muitas vezes voavam farpas de ferro, ferramentas e quando eles batiam o ferro quente e vermelho em cima da bigorna espirravam fagulhas para todos os lados.

Vovô estava sempre se queimando, arrebentando dedos, arrancando unhas nas suas andanças por lá! E xingava muito quando isso acontecia. Não é que tivesse uma variedade muito grande de xingos. Eram até poucos: diabo, “raio dos inferno”, desgraçado, peste... Por aí! Pode ser que eu esteja esquecendo de algum outro, mas o seu vocabulário não era muito variado neste assunto. O mais importante era saber decodificar como isso era dito.

Se fosse um só e rápido, diabo, por exemplo, ele ainda estava calmo. Se saíssem em salva, todos juntos, perigoso! O velho estava esquentado. Agora, se fossem todos de uma vez e arrastado, mais ou menos assim: rrraaaiiio doosss iiinnfffeerrrnnnnossss...! Saia da frente! A coisa tá feia! Você tinha que ficar atento à entonação do xingamento. Isso era o mais importante e salvador.

E eu estou lá no terreiro brincando e ouvindo o bater da marretinha no ferro aquecido e retirado da forja.

Pam, pam, pam... pém, pém, pém pererê pém pém! Os batidos surdos eram da marreta sobre o ferro quente e os outros mais agudos, metálicos, eram produzidos pelo seu bater sobre a bigorna nua, aço sobre aço. Ele gostava de fazer assim, parecia que era para marcar um ritmo ou só mania mesmo. Mas já vi muito outros ferreiros também fazerem a mesma coisa. Eu achava bonito aquele som e quando cresci e me aventurei lá pela forja, tentei imitá-lo, mas não consegui. Faltava treino ou habilidade ou as duas, sei lá!

Daí a pouco:

- Ô desgraçado, diabo, “raio dos infernos”... E logo em seguida chamaram-me para levar a lamparina com querosene e um pedaço de pano. Para qualquer um outro poderia ser linguagem simples, mas para mim era um código manjado, já sabia que alguém se estrepou e apostava dez por um que teria sido o vovô.

Não deu outra. Errou a marretada na talhadeira e acertou o dedo. O Zé me disse, anos depois, que ele queria porque queria botar o dedo ferido em cima da bigorna e bater mais ainda com a marreta e o Zé teve de segurá-lo. Ele, às vezes, ficava desatinado.

Despejei um pouco do querosene e ajudei a enrolar a tira de tecido que vovó mandou. Ela sempre tinha um monte deles passados a ferro para esterilizar. Naquela época não existia nada de Mertiolate, Mercurocromo ou Band-aid. O pessoal acreditava muito no querosene para desinfetar machucado.

- Compadre Izé! Segura a talhadeira aqui que eu vou bat... Nem chegou a terminar o que ia dizer.

- “Ieu não! Se ocê num teve pena do seu dedo, que dirá do meu? Vai lá pro canto, pega um cigarro e fuma quieto que ieu corto isso! Se acarma, homi!”

Ele era bem-mandado. Tirou a maço de Astória do bolso, pegou uma brasa com a tenaz, acendeu o pito e foi lá para o canto. Não demorou nem um minuto. Já estava de volta e pegando as ferramentas da mão do compadre Zé.

Não sei quanto tempo ficaram fazendo as rosetas. Só me lembro que quando terminou, veio com as esporas, pegou um líquido meio branco, assim da cor do barro que a Nadir passava todos os dias no fogão e começou a limpá-las com todo cuidado. Com uma talisca de bambu bem fina, ia passando por cada desenho, linha, tudo. Tinha de ficar branquinha.

Depois pegou um frasco com uma coisa que eu já conhecia de nome. Era Nujol. Aquilo, diziam, servia para dar para as pessoas que estavam entupidas com lombrigas. Dava uma caganeira danada nos coitados e as bichas vinham juntas. Argh! Eu não podia nem olhar para aquilo que imaginava a cena, apesar de nunca ter visto uma.

Esse Nujol era bom também para passar em tudo que era de couro para mantê-lo macio e conservar melhor, porque ele impedia, até certo ponto, a infiltração da água.

Feito isso, colocou as esporas nas botinas e foi para dentro da sala andar e observar como estava. Até hoje em me recordo delas, pois ainda me fazem lembrar daqueles vapores do Mississipi com aquelas rodas enormes lá atrás. Eu, sinceramente, achei que ele havia exagerado no tamanho das rosetas.

E andava pela casa assoalhada com tábuas de peroba e ouvia-se o triiim, toc! triiim, toc! Dos ruídos produzidos pelas rosetas e depois pelo salto da botina apoiando nas tábuas. Aparentemente ele estava satisfeito, tanto que pediu ao Mirá para selar o Murineli que estava sempre na cocheira comendo milho, cana, sendo lavado, escovado. Cavalinho cheio de frescura para a época.

E lá foi ele para a porta da venda. Na estrada que passava logo acima, montou no cavalo e fez a grande besteira. Um cavalo daqueles que se espantava até com a ponta da barrigueira solta, vovô achou de chamar o bicho nas esporas!

O cavalo deu uma arrancada tão repentina que nem aqueles carros idiotas lá nos Estados Unidos que têm rodas de trator atrás, pescoço comprido e umas rodinhas ridículas lá na frente, mais parecendo rodas de carrinho de supermercados: drag qualquer coisa... drag queen! Não! Isto é coisa relacionada com travesti! Eles arrancam com tanta força que por vezes até empinam, corre uma merdinha de nada e abre um para-quedas e param, pegam fogo, mata piloto. Coisa besta!

Suponho que vovô ia cair de qualquer maneira, ia ficar deitado na areia sem dúvida nenhuma, mas se assustou e tentou firmar-se nas rédeas e as puxou. Bater e valer! Murineli empinou, virou para trás e caíram ambos: vovô por baixo e o animal por cima. Por sorte caiu um pouco de lado, não diretamente sobre ele.

Mas o cavalo tão depressa caiu, como levantou e saiu em disparada, ainda enchendo a cara do velho de areia. E lá ficou ele deitado, já levando a mão num dos quartos e parecendo estar sentindo muita dor. Chegou gente. Ajudaram-no a levantar, mas não aguentou ficar de pé. Uma perna estava boba, formigando, e sentindo uns puxões.

Levaram o vovô carregado para casa. Isto era um tremendo de um mico! Vergonheira danada! Mas tudo mundo muito quieto. Ninguém ria, parecia que a coisa estava meio feia, pois eu senti que a vovó estava tensa. Foi logo acender uma vela, queimar palha benta e rezar para Nossa Senhora das Graças, santinha que ela mantinha em casa e somente a recorria quando, por exemplo, havia tempestade com muitos raios, ventos, ou seja, em situações difíceis.

Nadir logo foi à horta, apanhou saião, arnica, misturou sal grosso, amassou tudo e colocou o emplasto onde ele mais sentia a dor. Eu sempre soube que saião era bom para sangue pisado, mas nele, no vovô, não havia marca de sangue nenhuma. Não entendi bem, mas crianças nem sempre entendem muito bem o comportamento dos adultos e os adultos também juram que crianças não têm de entender de nada mesmo. Ficar na deles!

Mas alguém foi buscar o médico. Já de tardinha chegou o Dr. Brás e iniciou o exame no vovô que já estava de pijamas, deitado de barriga para cima, meio assim de lado. O doutor pegou nas pernas dele, girou, levantou, abriu, encolheu. Eu de olho! Depois pediu uma caneca com água fria e quente e uma pena de galinha, coisa que havia por demais pelo terreiro.

Pediu para meu avô fechar os olhos. Encostava uma caneca numa perna e a outra na outra perna e pedia para ele dizer qual era a fria. Achei até graça, qualquer um ia adivinhar, mesmo com os olhos fechados. Depois passou a pena pelos lados e na sola dos pés. Num deles vovô deu um puxão, sentiu cócegas, no outro quase nada. Pegou um martelinho de borracha e saiu batendo em vários lugares e também nos braços. Pirei! Ele não havia machucado os braços!

Depois eles viraram o velho de barriga para baixo. O doutor levantou a camisa e abaixou a calça e cueca até aparecer um pouco do rego da bunda branca, branca. As mulheres saíram do quarto e eu deveria sair também, mas não mandaram e eu fiquei firme, assistindo curioso. O médico apertou aqui, apertou ali, mexeu em uma porção de lugar lá nele. Terminou, saiu do quarto e foi para a sala fazer a receita.

Começou explicando o que havia e escrever numa folha de papel coisas que eu não sabia e se soubesse não iria entender aquela letra. Mas uma coisa gravei e fiquei apavorado. Ele disse claramente: “amanhã vocês o colocam no forno”.

De cara olhei para papai, homem grande, forte e percebi que a cara dele estava normal. Mas genro, não é parente, às vezes até há certo atrito, herança próxima (sei lá se na época eu teria capacidade de raciocinar assim). Vovó já estava sorridente e agradecendo o doutor, pois ele disse não ser nada demais, blá, blá blá... Nilson, Nelson, compadre Zé, todos pareciam até satisfeitos. Pô! Eles vão assar o vovô e só eu estou preocupado? Isto é uma traição muito grande! Até vovó?

Voltei lá no quarto e ele parecia estar dormindo. O médico havia aplicado uma injeção na popa dele para tirar a dor e acalmá-lo um bocado. Eu fiquei com muita pena do vovô. Ele sempre foi muito meu amigo. Fiquei com vontade de dizer que no dia seguinte eles todos iriam tacá-lo no forno, cumprindo determinação do médico. Mas fiquei quieto. Eu não deveria acordá-lo.

A minha ideia era fugir com ele lá para trás do pé de angico que existia no fundo do pomar. A gente atravessava o corguinho perto do pé de grumixama e o escondia dentro de um buraco que existia no tronco, bem rente ao chão. Cimá Preto, uma vez, me levou para lá porque eles queriam aplicar uma injeção em mim só porque eu estava com uma dor de garganta e febre mixurucas, coisinha à-toa. Tudo era injeção! Tudo era injeção! Também, os outros remédios eram muito ruins, mas injeção era o pior de todos. Vovô adorava tomar uma tal de Desby, ampola pequenina que ele, às vezes, aplicava em si mesmo. Tarado! Eu tinha horror delas, mas eles pegavam a gente à força, não adiantava correr ou espernear. Quer saber de uma coisa: até hoje eu não gosto de injeções! Mas se vovô não podia andar, como é que eu poderia levá-lo para o pé de angico? Ele era muito pesado para nós carregarmos. E eles iam ver. De noite eu não ia lá de jeito nenhum: mula-sem-cabeça, sacis... Problema!

Demorei muito para dormir. Fiquei a imaginar como é que eles iam assar o vovô, se é que iam, porque às vezes falam para o médico que sim, concordam com tudo e depois não fazem nada daquilo, não cumprem. Adulto mente muito, nossa! Não havia forno grande suficiente para colocá-lo dentro. O da cozinha mal dava para uma leitoa média. Também não se assam leitoas muito grandes, por isso não se precisam de fornos grandes. Lá no seu Alício Teixeira existia um fornão enorme, redondo, com chaminé e tudo. Naquele caberia o vovô. Será que eles vão levar o velho pra lá? Ou será que eles vão levar para o engenho?

Não! No engenho há aquelas tachas grandes de fazer rapadura, mas não forno. Ou será que eles vão fritar? Não acredito! Para fritar, precisaria de muita gordura para encher aquelas tachas. Vovô não é um homão, mas também não é nenhum porquinho macau. Mas eu tenho certeza de ter ouvido o médico dizer forno! Forno não é tacha! No engenho não seria.

O dia seguinte chegou. Já pela manhã parecia que o vovô estava melhor, mas eu vi alguém esfregar uma banha nas costas dele. Melhor! Não se passa banha no lombo das leitoas, mas sal grosso, alho e cebola, salsinha. Se eu vir botar esses temperos, eu chego para ele e conto tudo. Será que ele ainda não percebeu nada? Será que o tombo afetou os miolos dele também? O médico disse que não, mas médicos nem sempre acertam tudo!

Então vieram com uma barraquinha e colocaram em cima dele, tapando do pescoço até mais ou menos nos joelhos. Julguei ser para não deixar as moscas pousarem. Vovó e Nadir também quando temperavam as leitoas na época do Natal, cobriam com um pano. Eu já tinha visto temperar coisas para assar lá em casa.

Vovô sempre teve energia elétrica em casa e muitas pessoas iam lá para se tratar, tomar injeção, fazer "banho de luz" para sinusite e outras coisas desconhecidas. Às vezes até pousavam por lá dias e dias. Eu gostava muito quando alguém precisava tomar penicilina porque era uma injeção de três em três horas, noite toda, e os frascos tinham de ser guardados no gelo e pó de serra que vinham da cooperativa. Eu gostava demais de chupar o gelo e ganhar os vidrinhos vazios para fazer latas de leite para meu caminhãozinho carregar.

Pois é! Botaram aquela barraca nele e ligaram numa tomada. Não aconteceu nada e vovô lá de baixo, quieto, quieto. Bobo, bobo! Nem desconfiava de nada! Ficou assim um tempão e eu tomando conta. Não queria lembrar o negócio do forno, pois, às vezes, quem sabe? Eles poderiam ter esquecido e ele escaparia. Mas não me contive e perguntei para mamãe o que era aquilo e ela me disse que era o forno.

FORNO! Gritei e disparei a rir. Aquilo não assaria nem um mosquito! Mamãe não entendeu nada e nem eu disse da minha mancada, dos meus temores. Saí correndo lá para o terreiro. Estive na cozinha, comi um canecão de angu com leite, passei pela varanda e vi o par de esporas pendurado num prego no portal do paiol com uma roseta amassada, cambeta. Só depois fui brincar de baixo do assoalho, tranquilão.

Agora tubo bem de novo. Família unida como sempre. Nada de traição. A não ser a da grande e bela língua portuguesa que até hoje ainda cisma e me passa a perna. E como!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 27/05/2009
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