MANGA VERDE

Você já comeu manga verde com sal? Não? Brincadeira! Não sabe o que está perdendo!

Nasci e vivi parte da minha vida numa fazenda em Valão do Barro. E que fazenda por lá não tinha um pomar? O nosso não era muito variado em espécies, mas grande em extensão. Havia três jabuticabeiras, um pé de coração do boi, uns dois ou três de grumixama, um de abacate, um de lima embiguda, dois enormes pés de jamelão, dois de coités e um monte, montão mesmo de diferentes mangueiras.

Quem não foi roceiro pode pensar que na roça é pura liberdade, beirando à zorra, mas tínhamos regulamentos, métodos que, muitas vezes e a despeito de não terem nada a ver com a verdade, para nós, criados sob aquele regime, eram leis.

Exemplo: de manhã éramos obrigados a tomar leite, gostasse ou não. Com café ou com rapadura queimada era a principal alimentação. Pronto! Ninguém podia comer nenhuma fruta porque seria morte certa. Manga com leite? Veneno! Somente depois do almoço, aí pelas nove horas, o leite ficaria por baixo e você poderia descer o porrete nas mangas sem nenhum remorso. Também não se podia comer manga e abacaxi, por exemplo, mas se você tomasse entre as frutas três goles d’água, poderia mandar brasa no que viesse, desde que separadas pelos goles. E frutas com bebida alcoólica? Mistura mortífera! Dinamite pura e qualificada! Tá na cara que ninguém tomava batida, ô mané!

Agora você imagina comer manga verde? Suicídio! Deve ter sido o Guilherme quem descobriu essa iguaria e, às escondidas, nós nos deliciávamos. Aquelas muito verdes ainda tinham muita seiva, terebintina e queimava os cantos da boca. Era como se você assinasse a confissão: moleque com os cantos da boca feridos e que não tivesse tido febre alta, teria comido manga verde ou castanha de caju. Sem possibilidade de erro quanto ao presumido diagnóstico. Como lá no pomar não existiam cajus... Diagnóstico de certeza.

De manhã cedo corríamos para o pomar para pegar as mangas caídas à noite. Disputávamos com os porcos, galinhas e até com as vacas. Então a gente pegava também aquelas de vez, escondia-as na beira da estrada que nos levava ao colégio e no percurso comia e distribuíamos com as outras tantas crianças formando um bando alegre e barulhento naquela estrada de areias quentes e poeirentas. Na volta, passávamos rente à porteira da casa do Guilherme, municiávamos novamente e íamos qual um bando de cabritinhos safados e soltos na pradaria, com os pés descalços inventado brincadeiras, pulando pelos barrancos beirando estrada afora.

Muitos anos depois eu estava no sítio e achei uma apetitosa manga caída debaixo de uma grande mangueira existente lá. Abaixei e a peguei pensando estar madura. Minha filha Carmela estava comigo e perguntei:

- Você já comeu manga verde com sal?

- Hã! Hã!

- Quer comer uma? É bom demais!

- Hã! Hã!

Carmela não a quis e então tive o ímpeto de levá-la para casa, descascar, tirar as lascas, passar um pouco de sal, fechar os olhos e me deliciar com o pitéu. Logo desisti e a coloquei sobre um dos banquinhos de pedras que a Isa fez rodeando o tronco daquela árvore, uma miniatura do portal de Stonehenge. Tenho a impressão que o outro eu, aquele às vezes inconsequente, desvairado, o meu inconsciente, deve ter dado o alerta. Também me safa de maus momentos.

- Olhe se você não vai fazer merda outra vez! Aquelas mangas verdes que você comia com sal foram as da sua época de menino roceiro onde tudo o que se fazia era bom, mágico, sem sombras de dúvidas e deixou saudades gostosas para serem lembradas, na maioria das vezes, nos momentos de baixo austral. E agora? Você garante que vai ser da mesma forma?

-Tá lembrado quando cismou por que cismou em voltar àquele lugar da primeira casa em que morou? Me lembro você tristonho, decepcionado, cara de tacho porque aquele mundão de casa imaginado nunca poderia caber naquele mesmo espaço visto agora. E o terreiro para secar feijão, arroz, café? O paiol? A ceva dos porcos? O pé de pinha? E a grande laranjeira campista defronte à janela do quarto de dormir? Quase dava para pegar laranja daquele lugar! Tá lembrado, num tá?

- Você ficou muito pra baixo, chué, bocó; levou o maior cacete, um verdadeiro coice do seu passado. Naturalmente na sua cabeça de criança tudo era um pouco irreal, fantasioso e aquela casa não fora tão grande assim como até então você imaginara. Se acontecer outro trauma agora aquelas belas imagens retidas de uma pequena faceta da melhor vida do menino feliz e livre vão ficar arranhadas, manchadas e você vai encher o meu saco para deixá-las num canto, bem escondidas, não as desejando ver mais. Se isso fosse para sempre, vá lá, mas tenho certeza de que, de tempo em tempo, vai me perturbar, morrendo de saudades, querendo-as de novo. Mas é você quem manda; a decisão é sua. Quer mesmo comer esta manga verde com sal?

- Hã! Hã!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 31/05/2009
Código do texto: T1625257