Contos Noturnos IV - Outono

Tudo o que nós temos são as lembranças.

Era noite, a lua ia alta e cheia, os sussurros das árvores se davam distantes e tudo parecia tranqüilamente inquietador. Já estava andando fazia alguns dias, viajava desconcertado, sem inspirações maiores, prosseguindo com meus passos lentos em direção à um lugar distante do passado e do presente. Meus pensamentos me incomodavam.

Andei durante horas noite a dentro, sem me incomodar com o frio que fazia nuvens espessas se soltarem de meus lábios, eu perambulava pelo largo cerrado. As árvores pequenas e retorcidas pareciam tomar formas confusas e assombradas, o vasto campo brilhava abaixo de meus pés. Senti um vento penetrar minha espinha e retorcer-me os nervos. Do interior de moitas um barulho de remexer violento surgia apavorante às minhas crenças criadas à solidão, a vegetação agitavas-se e meu coração começava a disparar, e como um tiro de partida, no instante imediato que o sangue fez-se feroz e bombeou violento em meu peito, saíram, velozes, duas raposas por detrás da confusão botânica. Um uivo mesclado de rugido se estendeu pelo céu, e deitou-se entre as estrelas, rasgando como lâmina o silêncio típico da noite. Seus olhares eram de pavor.

Adiantei-me assustado e meio cambaleante, procurando fixamente a direção do rugido, meus ouvidos não conseguiam distinguir, então na minha frente, como se fosse seta, vinha correndo espumante um ser, seu corpo semelhante ao de um lobo, seus olhos que ardiam como brasa, e seu tamanho descomunal, fazendo-se maior do que eu, atravessou-me atropelando, impedindo-me de qualquer possibilidade de esquiva, pois dobrava o corpo em curva posicionando precisamente nas minhas laterais. A única coisa que consegui sentir foram suas mandibulas espremendo minhas costelas. Ele galopou comigo entre os dentes ainda acordado, bravejando a cabeça e aos urros me entrepondo de um lado à outro. Aproximando-se de um rio, e após deleitar-se de meu sangue quente, despejou-me no chão, antes de cair desacordado, vi meu reflexo no espelho d'água, sua face era a minha. Naquele instante senti a vida esvair-se de mim. O ciclo eterno da finitude tinha girado uma vez mais, ou ao menos assim, eu acreditava.

Tangível, meu corpo adormecia, e pude por alguns instantes ver a paisagem etérea da forma verdadeira. Um pavor crescente foi me dominando, gelando minha consciência e alimentando com fantasmas os meus medos mais crescentes. Comecei a tentar me mexer, mas fui impedido por uma insensibilidade jamais sentida antes, não conseguia mover um só músculo! A escuridão se aproximou de mim, e envolvente foi me prendendo, como se segurasse meus membros para que eu não pudesse escapar, o frio se fez mais constante e dilacerante, adentrando então cada fresta que poderia haver na minha constituição espectral. Os sentidos todos começaram a desfalecer. Porém, surpreendentemente, um cheiro adocicado começou a penetrar no véu de negritude e torpor. O cheiro suave nas instancias imediatas foi-se fazendo mais forte, era doce e ao mesmo tempo refrescante, orgânico, lembrava ervas ardendo em brasas. Meus olhos ameaçaram abrir e minha cabeça latejava. Eu conseguia ver por entre os mantos da morte.

Um homem de estatura avermelhada estava prostrado em minha frente, seus olhos refletiam uma seriedade e uma serenidade digna dos sábios, eu tremia perto dele e me congestionava de pensamentos irresignados à resposta. Sua voz soava e ecoava dentro de minha mente. Ao lado dele estava uma bela mulher, de pele também avermelhada, com o corpo definido e tingido de alvides acordoada. Ela mantinha-se quieta e observava-me calmamente por entre os joelhos. Até aquele momento ninguém ousara profanar palavra alguma, apenas ganidos e resmungos típicos dos desacordados e doentes; O homem apontou para minhas feridas.

O que aconteceu comigo? Amedrontado pelo tamanho das cicatrizes e consumido pelo desconfortável e incomodo silêncio comunicativo dos olhares, decidi ocupar-me do trono inconstante da ousadia e apoderar-me da voz da primeira palavra. Eles se entreolharam silenciosamente.

O homem estendeu o cachimbo até meus lábios, e timidamente, traguei sua ardente e inebriante fumaça. Ele tapou meus olhos e a mulher começou a andar em minha volta. Eu senti como se seus passos ecoassem no interior de minha cabeça, e comecei a ver parte à parte minha vida diante minha cegueira induzida. Cada suspiro que ignorante tirei de tantas bocas, tantos maldizeres acumulados por horas conseguintes a glórias inúteis, vísceras de mim mesmo a serem expostas enquanto chorava e rezava num chão de banheiro público...! Pude sentir como se tocasse a prata e a pele que jamais conseguira novamente sentir entre os dedos! Eles falavam em um idioma desconhecido por mim até então. A fumaça foi penetrando meu corpo e fui adormecendo para as dores, garras laceravam minhas costas.

Na minha mente eu pude ver aquilo que me atormentava, as formas tornando-se inauditas, e os diálogos que de tão longos se fundaram no logos da minha existência. Eu vi a linha limite se romper e eu afundar dentro do que é, dentro daquele abismo que se pode chamar de Ser. Meu corpo parecia perder a forma já conhecida naquilo como eu era, dentro de eras insensatas onde tentava ultrapassar as minhas próprias barreiras de ignorância através de uma estupidez embebida em libido e insensibilidade. Vi-me tomar a forma daquilo que ardia dentro de meu íntimo e que eu sismava em lutar contra. Os corpos dos homens pegaram fogo frente à meus olhos e prostraram-se raposas vermelhas, as mesmas que atravessaram meu caminho antes de Morrer. Eu seria este para sempre, a besta que própria se matou.

Diante de meus sentidos, estava eu agora com quatro patas encaixadas no húmus, uma calda surgira a balançar diante da nobreza da lua e do renascimento dentro dos infortúnios da vida. Meu grito se estendeu agudo pela escuridão, e as raposas aos meus pés, rodopiavam. Eu podia sentir como se fogo me consumisse. Minhas costelas ardiam e doíam, logo, tudo desapareceu.

Apenas, gravado ficou em minha epiderme todas as lembranças que atravessaram minha íris. Os ciclos sempre se completam.

R Duccini
Enviado por R Duccini em 15/06/2009
Reeditado em 15/06/2009
Código do texto: T1650182