UM DIA DE CHUVA NOS TRÓPICOS

Em terras a apenas quarenta e quatro metros acima do nível do mar, Asunción é uma baixada de clima tórrido e úmido, gigantesca estufa onde os humanos cozinham vivos em banho-maria entre polcas, guarânias e sessões intermináveis de tererê, o refresco de erva-mate. A despeito do clima tropical, a capital do Paraguai nunca teve sistema de escoamento de águas, de modo que as chuvas torrenciais que provocam os famosos "raudales”, inundações momentâneas, são freqüentes e periódicos. O escoamento da água faz-se natural e lentamente pelas ruas para o rio Paraguai.

Naquela manhã de maio de 1979, não seria absurdo se, a qualquer instante, as rãs bailassem sua rotina aquática pelos ares, flutuando na atmosfera líquida que se respirava.

Em questão de minutos, a manhã fez-se noite. Invisíveis os pássaros, as árvores e todos os viventes. Toda a natureza em expectativa calada. A tempestade explodiu num estrondo repentino que abalou as entranhas da terra até o Chaco paraguaio, e o céu abriu-se em faíscas, que vinham do horizonte sul contra o norte. Arcos acesos de cento e oitenta graus multiplicavam-se num trovejar ensurdecedor. Alma humana alguma não se apequenaria diante daquela pirotecnia celestial, grandioso e medonho espetáculo dos trópicos!

O mundo sacudia em caos elétrico até que o céu rachou ao meio e desabou derretido sobre a América. Durante as doze horas seguintes, verteria todas as chuvas acumuladas desde a criação.

As ruas do bairro, uns setenta centímetros abaixo do nível das calçadas, inundaram-se rapidamente. Três ou quatro toras de eucalipto, amontoadas e esquecidas há meses numa obra do bairro, flutuavam soltas e vinham descendo a rua até esbarrar no jeep Willys, estacionado em frente do portão da casa. E mais uma dezena de toras virou a esquina, rápida e desordenadamente, espancando carros, portões, muros, formando mikados gigantes e momentâneos que em seguida se desfaziam na correnteza cada vez mais violenta e rápida.

A água invadiu jardins e quintais e no interior das casas já atingia um palmo de fundo. Alarmada, Mariana correu para o telefone e ligou para uma amiga espanhola que vivia no centro de Asunción. Apenas começara a explicar a situação, a ligação caiu. Com o telefone mudo, a última ponte para o mundo seco tinha sido cortada.

As janelas eram baixas e por elas jorrava uma lâmina grossa de água escura que varria tudo pela frente. Ela e Dora, a empregada, mudaram os aparelhos elétricos e eletrônicos para as mesas e prateleiras mais altas. Em vão. A água alcançou-os em minutos. Era urgente desligar a chave elétrica embutida numa caixa metálica na parede da cozinha. A tentativa de abri-la com um cabo de vassoura foi inútil. Mariana trazia o filho de três anos enganchado na cintura, e apenas um braço ficava livre para os movimentos.

A visão da cozinha, nesse momento, era inusitada. O botijão de gás flutuava preso a um cordão umbilical retorcido. Armários de portas abertas pela correnteza liberavam todos os utensílios plásticos. A geladeira, também de porta aberta, continuava a funcionar, indiferente ao fato de a água já ter subido a um metro de altura dentro de casa. Vinham à tona cenouras, alfaces, gavetas plásticas, caixas de todos os tamanhos, garrafas mal cheias, embalagens de margarina, bisnagas de mostarda, de ketchup e bolsas plásticas. Misturavam-se às vassouras, aos baldes e às bacias plásticas. Tudo aquilo vagava até as portas e em seguida disparava em rota confusa. Tinham que sair dali.

A criança choramingou assustada. Não reconhecia o estado de calamidade da casa e as reações nervosas da mãe e da empregada. A água chegava então, um pouco mais acima da cintura. Não havia uma escada na casa. O ponto mais alto que, na pressa, Mariana pôde calcular foi o teto do carro na garagem.

Antes de abandonar tudo, arrebanhou uma penca de bananas de um cesto de frutas sobre a geladeira. Gritou à moça que viesse, e atravessaram a casa, o que exigia rapidez e cuidado. Tateando o chão da cozinha, tropeçando em volumes que se adivinhava serem bolsas, ou roupas da lavanderia, almofadas, tapetes enrodilhados no chão da sala, ou ainda as enormes floreiras de barro, quebradas sem dúvida. Dos banheiros e dos quartos, vinham ao deus-dará, frascos de remédios, escovas de cabelo, brinquedos e objetos vários. Plantas arrancadas pela raiz roçavam-lhes as pernas dentro da água.

As águas tinham invadido as fossas sépticas, e andavam todos mergulhados num caldo lamacento e fétido com um pouco de tudo o que a fúria da natureza tinha desentocado das entranhas da terra e das amarras da rotina.

Em cima do Galaxi estacionado na garagem, já se haviam refugiado os cachorros da casa; Mariana tinha feito o mesmo cálculo instintivo dos animais.

Duas mulheres, o garoto e dois cachorros dividiam agora os dois metros quadrados do teto do carro abaulado pelo peso. Estavam rodeados pela água escura que se estendia a perder de vista até a entrada do bairro. Sentada de pernas cruzadas à indiana, protegia o pequeno Nuno no colo e pensava no filho mais velho que, àquela hora, já deveria estar de volta do colégio. Tentava acalmar-se com a idéia de que o colégio tomaria providências para proteger as crianças até que a situação se normalizasse. Afastava o pisoteio dos cachorros apavorados que lhes arranhavam as pernas à procura de uma saída.

A chuva vinha pesada. Na garagem aberta, chovia tanto quanto lá fora. Parecia que as águas se haviam multiplicado de um golpe só e vinham em ondas violentas. Só depois de terminada a tempestade, saberiam que um dique atrás do bairro tinha estourado. Em liberdade, o elemento líquido vingava-se num impacto portentoso; arrasava varandas, muros, pequenas construções e piscinas que foram rachando e ruindo um a um com baques surdos num efeito dominó devastador. O nível da água beirava o teto do carro e Dora chorava sem se conter: não sabia nadar, que Deus a acudisse.

-Reza, fuerte, y en doble, que yo no sé rezar. Calmate. Ya pasa todo. Ya pasa todo, verás. Começou assim, o longo exercício de acalmar a criança, que chorava ao ver Dora chorar; de conter os cachorros desvairados que ameaçavam derrubá-los e de convencer a si mesma pela sugestão de tanto pedir calma aos outros. Apertados no pouco espaço do teto do carro, não havia espaço para pânico.

Dora chorava e a chuva chovia. As lágrimas dela e aquela chuva caudalosa eram uma coisa só e sem limites. Na ladainha aflita da reza em espanhol e guarani, chamava Deus, a Virgem e os anjos da guarda. Céu e terra ligados pelas orações dela e por um corredor líquido em forma de chuva grossa. O vento gelava as roupas molhadas.

O pequeno choramingou; queria comer batatas fritas. A mãe disse-lhe que comesse uma banana até chegar o almoço. Na realidade, já haviam passado duas horas da hora do almoço. Onde estaria o Pedro? O ônibus teria voltado para trás, levando as crianças de volta ao colégio?

Sentiu o carro mover-se em direção à coluna que sustentava o telhado da garagem. Dessa vez não fora impressão não. Ela tinha a certeza. Instinto e lógica veloz traçaram imediatamente um plano.

A uns duzentos metros da casa, havia um monte de terra firme com cinco metros de altura. Mariana soltou um pedaço de casca de banana na água. Viu-a afastar-se na correnteza, contornar o monte pelo lado esquerdo e desaparecer atrás dele. Atirou uma segunda casca, desta vez, apontando-a para a direita e a corrente levou-a ao destino certo. Se tivesse que abandonar o teto do carro, era em direção ao lado direito do monte que deveria sair, mas só se atreveria a arriscar em último caso. E, se isso acontecesse, Dora ficaria para trás. Um arrepio correu-lhe pelo corpo e desfez-se de imediato. O monstro da sobrevivência instalara-se absoluto em suas entranhas.

Nadar com o filho às costas seria muito arriscado. Se tivesse que sair dali a nado, era preciso amarrá-lo ao seu corpo. Precisava rasgar fitas de pano da saia para prender os pulsos do filho com firmeza. Amarrados os pulsos, poderia passar os braços da criança em volta de seu pescoço para levá-lo às costas, sem que ele se soltasse na fúria da corrente. Ajeitou-se de lado, quase de costas para Dora para que ela não a visse levar a bainha da saia aos dentes. Para reforçar as tiras, retorceu-as e entrançou-as. A criança adormecera com fome e com frio ao som daquela prece tão interminável como o delírio chuvoso dos céus. Deixou-se algemar aninhado no colo dela.

Carros passavam em cortejo flutuante na rua-rio, e eram ultrapassados por baldes, por bacias e por todo o tipo de utensílios plásticos. Chocavam-se nos cruzamentos, com os que vinham da banda de lá. Rodavam um balé de encruzilhada e seguiam em trânsito fluido de uma só direção. Da ilha improvisada na garagem, viam-se as pessoas aglomeradas nos telhados das casas. Gritavam, gesticulando para os vizinhos. Clamor estéril, babel pluvifônica, a voz das águas falava mais alto.

O carro cedia à pressão da corrente. Apesar de ter no porta-malas o peso de um enorme tambor de duzentos litros de óleo de avião, apesar do tanque cheio de gasolina, apesar do peso das pessoas, dos cães e do próprio peso, o carro deslizava! A traseira do Galaxi, mais exposta à correnteza, encostara na única pilastra que sustentava o telhado da varanda. Se a rebentasse, o telhado se abateria sobre todos eles no teto do carro.

A noite se fazia entre o céu e a terra, entre a esperança e o desespero da espera. Uma cobra de água apareceu em volta do carro e depois outra. Dora não quis ouvir explicações. Gritou o quanto lhe permitiam os pulmões durante minutos seguidos até cair num estado manso de prostração.

A chuva estúpida, desalmada, chovia dilatada em cataratas. Angústia e cansaço começavam a inundar o raciocínio. Chovia dentro das idéias tanto como a chuvarada lá fora.

Mas o nível da água que rondava o teto do carro não subiu. E assim se manteve meia hora, mais meia hora, uma hora e meia hora mais. Até que abrandou, ou parecia que abrandava? Não. Era só chuva mesmo. Uma chuva mais fina, por vezes um chuvisco.

As águas baixavam lentamente, e os botes infláveis da marinha paraguaia apareceram na entrada do bairro. Megafones pediam calma, todos seriam socorridos. Avisavam, ainda, que as crianças dos ônibus escolares estavam em segurança. Um sopro solidário espalhou pelo ar um abraço a todo o bairro. Agora a água baixava mais rapidamente e já podiam abandonar o teto do carro. Sem dizer uma palavra, Dora viu Mariana desamarrar os pulsos do bebê. Depois, ficaram à porta da casa, Mariana com o filho ao colo, esperando o outro menino aparecer.

Duas horas contadas em minutos e segundos, e parecia que era Pedro chegava. Era ele? Com água pelos joelhos, a pasta da escola às costas, seu jeitinho distraído e calmo. Era ele sim. Veio sozinho na quase escuridão do fim da tarde, mas, ao ver a mãe, o sorriso que trazia eram sóis.

Às onze da noite, puderam finalmente jantar em casa de Ana Maria. Souberam pela televisão que uma criança e dois homens levados pela corrente tinham sido encontrados mortos a vinte quilômetros do bairro. Era esse o saldo de um dia pluvitrágico em Asunción.

Em solo seco e acolhedor, e depois que as crianças dormiram, o relato que Mariana fez aos amigos era um lago só: água e medo. À medida que ela conjugava os verbos no pretérito, o presente desfazia-se em passado e alívio. Podia finalmente desarmar-se.

Espantosa essa mágica que se faz com as palavras e os tempos: ela despeja da alma para fora o estado de identidade onipotente e desumana: o instinto de sobrevivência em alerta máximo.

Depois que essa força absoluta e impiedosa é extravasada por todos os poros, o ser humano, diante de sua condição habitual e a sós com a consciência, fica entregue à perplexidade.

Asunción, maio de 1979

Anabela Bingre de Négrier
Enviado por Anabela Bingre de Négrier em 29/05/2006
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