VACA DOENTE

Dr Paco era um veterinário considerado e respeitado, tanto pelos seus dotes profissionais como pela pessoa alegre, expansiva, de bem com a vida. De bochechas cheias, olhos amendoados e nariz típico de um descendente Maia, Inca, mais ou menos isso aí. Não sei exatamente sua origem sul-americana, mas veio estudar no Brasil, acabou gostando e ficou. Bom para ele e melhor ainda para aquelas pessoas que dele necessitavam e conviviam. Não dá para fugir do lugar-comum: gente boa! Gente fina!

Não precisava, mas adorava aparecer. Estrela demais para o costume tradicional interiorano. Assim, se ele tratasse de um animal, por mais furreca que fosse a doença, logo ao re-encontrar-se o dono do animal e preferencialmente na presença de muitas outras pessoas, perguntava pela saúde do bicho em voz alta e sorriso aberto. E ali aproveitava para narrar outros casos difíceis que havia vivenciado, sempre com resultado positivo. Animal tratado pelo Dr Paco dificilmente morria. Mas também não era nenhum Deus.

Certo dia foi chamado para atender a um cavalo que se contorcia em dores. Deitado, suado e sem se alimentar desde o dia anterior. Sofrendo. Paquito, como também era conhecido pelos íntimos, chegou, olhou e deu seu veredicto:

- Morre em dois dias!

Tempos depois encontrou-se com o proprietário do ex-cavalo. E, já não tanto confiante na verdade anterior, não perguntou nada e se pudesse, até fingiria não estar vendo o fazendeiro que fez questão de se dirigir para o seu lado e lhe tecer elogios até por acertar na morte do animal. De fato, disse ele, o cavalo morreu dois dias depois:

- Posso não ser muito bom em diagnóstico, seu Jorge, mas prognóstico não erro um! Disse, abrindo o mais manjado dos sorrisos.

- Justo! Respondeu seu Jorge, mais encrencado do que nunca com aquelas duas palavras das quais ele provavelmente nunca ouvira menção antes.

Era rotina sair quase todos os dias, já que ocupava cargo em uma empresa pública para apoio ao proprietário rural. Naquela sexta-feira não poderia ser diferente e lá estava o Dr Paco no sítio do seu Jeromo cuidando de uma vaca doente.

A coitada estava arriada debaixo de uma velha mangueira, abatida, tremendo e – sinal de perigo – não ruminava. Fez algumas perguntas, alguns exames superficiais e dali a pouco disse para seu Jeromo do quê a vaquinha sofria.

O proprietário tinha forte mimo pelo animal. Não por ser ela nenhuma PO e coisa e tal, mas por ser antiga ali na fazenda, já da terceira geração, vinda ainda do seu finado pai. Por isso ele queria porque queria a cura da vaca. Gastaria até alguns contos em remédios, já que todas as garrafadas, banhos, benzedura e outras mandingas conhecidas ele já havia tentado e nada.

Dr Paco forneceu a receita e explicou com detalhes como administrar os medicamentos e se foi. Dias passaram e ele nem mais se lembrava do acontecido quando viu o sô Jeromo bem na praça, alegre e no maior papo com meia dúzia de amigos.

Paquito manjou, pela descontração e o estado de espírito do fazendeiro que a vaca estivesse curada. Ele se gabava do seu senso de observação, da psicologia humana e até mesmo da dos animais. E havia ali uma ocasião propícia para autopromoção e já de longe, braços abertos e falando alto, sorrisão aberto até as orelhas, como sempre, aproximou-se e lascou:

- E a vaca, seu Jeromo, tá enxuta, sacudida?

Ele tinha a certeza de que a resposta seria sim.

- Morreu, dotô, disse seca e pesarosamente o sô Jeromo. Dr. Paco pagou um mico imperdoável: lembrar ao seu Jeromo a vaquinha mimada.

- Morió? Pero, que pasó?

Ele tinha um cacoete: quando ficava nervoso, preocupado ou em certas situações críticas, embolava português com espanhol, maioria das vezes errando ambos e criando o maior auê.

- Pero, a vaca estava com uma doença manjada e eu dei os remédios para aquele mal. Vai ver o senhor não deu o remédio direitinho, heim, seu Jeromo? Não podia ter morrido, hombre! Algo errado o senhor andou fazendo! Ah, andou! Olhe seu Jeromo, seu Jeromo! O quê o senhor aprontou?

Nesta altura o sô Jeromo já estava sentindo que o ferro ia entrar quente, ardendo. Acabaria sendo o responsável pela morte da vaca e antes que as coisas piorassem, com as duas mãos elevadas à altura do peito e flexionando os antebraços para frente e para trás, para tranquilizar o Dr Paco:

- Se acarma, dotô Paco! O sinhô acertô em chei na doença. O remédio foi munto bão, Nossa Senhora! E eu fiz direitim cumo o sinhô mandô. Pode ficá tranquilo porque a vaca quando morreu tava munto mior do que no dia que o sinhô teve lá!

E estalando os dedos da mão direita contra a própria palma elevada à altura do rosto, completou:

- Mais munto mior mermo, ó! Num tinha comparação! Benza Deus!

Encerrou fazendo o sinal da cruz, acompanhado pelo Dr Paco que aproveitou a deixa, fez também o pelo-sinal e se mandou.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 21/06/2009
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