Sonho ou Realidade?

Curitiba, Janeiro de 2002. O verão lá fora era infernal. Muitos diziam que era o verão mais quente da história. E isso sentia-se no ar, abafado e rarefeito. Deus Sol decidiu despejar toda a sua fúria contra nós, reles mortais da terra. Os poros da minha pele trabalhavam incansavelmente para manter a temperatura do seu chefe no limite recomendável. Porém, as roupas veraneias me atrapalhavam um pouco, dando mais trabalho para as minhas glândulas sebáceas. Para ajudá-las, tiro a camiseta e fico só de short.

Pois bem. Era um sábado, 20h00. Não tinha muito que fazer em casa. Meus pais tinham saído para fazer compras, mas iam chegar a qualquer momento. Ainda não tive notícias dos meus amigos, nem por telefone, nem por ICQ. Ou seja: eu não tinha falado com eles ainda. Como não tinha nada a fazer e nada a perder, resolvi ligar a TV para me entreter.

Ligo a TV. Para começo de conversa, a supracitada estava sintonizada na Globo. Tava passando uma daquelas novelinhas chatas e melosas. Novela por novela, prefiro ir para a frente do PC.

Personal Computer. Se Steve Jobs e Steve Wozniak não tivessem criado o Macintosh, o que seria de nós? Ainda estaríamos nos correspondendo por carta? Boa pergunta. Mas não me questionei muito sobre isso e resolvi conectar-me a Internet e abrir o ICQ, o programinha revolucionário que a filha-da-mãe da Microsoft o ferrou. Era leve, versátil, não tinha todas aqueles elefantes brancos do comunicador do homem dos óculos de fundo-de-garrafa e rodava em qualquer computador. Quer coisa melhor do que isso?

Entrei no ICQ. Dos meus cento-e-lá-vai-cassetada de contatos, 23 estavam on-line. Entre eles estava o Lino, vulgo Paulista. Pelo apelido denota-se a sua origem. Ele nasceu na urbe de Piratininga, mas se mudou com 7 anos para a terra de Guairacá. Ele era o meu melhor amigo e nós sempre saíamos juntos por aí, a admirar a lua e a apreciar as estrelas terrestres...

 

Nada a fazer, resolvi teclar com o Paulista:

- Dae Paulista blz?

- Fala Fred! Blza Mano! E vc?

- Comigo tbm! Paulista, tah fzndo alguma coisa aí?

- Nada veio, e vc?

- Eu tbm!

- Fred, me lembrei de uma koisa. As 22h vai ter festa na kasa da Lika. Vamo lah?

- Toh esperandu meus pais xegarem pra v c eles me liberam, blz?

- Blz! Eles vaum demorah pra xegar?

- Naum demoram mto, jah devem tah xegandu!

O meu recém-adquirido celular toca. É meu pai:

- Alô, Fred!

- Oi, pai!

- Tudo bem com você?

- Tudo!

- Filho, nós já estamos chegando em casa, mas depois, eu e sua mãe na casa do seu tio Hélio, pra dar uma na pintura da casa nova. Você vai ficar aí ou pretende ir a alguma festa?

- Vou numa festa sim, pai. É na casa da Aline, que mora aqui no fim da rua.

- Ah, a filha do Barata?

- Sim, pai.

- Pois então, Fred. Pode ir, mas deixe tudo chaveado e volte cedo, viu?

- Tá bom, pai.

- Ah, uma coisa: a que horas você vai?

- Vou lá pelas nove e quinze. Ainda preciso falar com o Paulista sobre isso, mas acho que vamos nesse horário mesmo.

- Tá bom, filho. Não exagere na bebida, não use drogas e se for transar, use camisinha, OK?

- OK!

- Tchau, Fred!

- Tchau, pai!

 

Voltando ao ICQ:

 

- Pq sumiu? – disse o Paulista.

- Meu pai me ligou.

- E daih, o q ele disse?

- Ele libero, pq ele i a minha mãe vaum na casa dos meus tios, lah no Boa Vista.

- Opa! C a chefia liberow, vai rolah! \o/

- Eh nóis, veio!

- Q horas agenti vai?

- 9:15 tah bom?

- Feito!

- Entaum vc m espera na frenti d ksa, blz?

- Blz!

- Vo tomar um banhu e m arrumah, pq a noiti vai ser looonga, meu fio! Vamo passa o rodo nessa festa!

- Eh nóis apavorandu, mano!

- Flw!

- Flw!

Bom. Agora era tomar um banho e se vestir.

Aos poucos as boas energias noturnas começaram a tomar conta de todos os recantos e grotões mais recônditos do meu corpo. Era como se eu estivesse diante de um carregador enquanto eu me banhava. O óxido de dihidrogênio me supria de íons de boas energias, atravessando as minhas camadas cutâneas e chegando até as minhas sinapses, que mandavam as cargas para o cérebro, liberando neurotransmissores por todo o meu cérebro, estimulando os meus neurônios e me fazendo sentir leve como uma pluma e imponente como o canto belo do sabiá. Era necessário fazer isso para um bom aproveitamento da noite, onde as energias seriam gastas em boas atividades que envolviam nobres sentimentos em jogo. Até porque estávamos no Verão, a estação ideal para as atividades de Cupido.

Depois da sessão de carregamento, era a hora de se vestir com os trajes iluminados. Fiquei meio indeciso: vestia a camiseta da Quiksilver que eu ganhei de Natal ou a minha camiseta Onbongo, minha predileta? A camiseta da Onbongo é bonita, com um tecido macio e confortável. A Quiksilver também é macia e confortável, só que mais clara. Como estava abafada aquela noite, vesti a camiseta da Prata Rápida.

Quanto ao short, não tive dúvidas: vesti o meu short havaiano mesmo. Se a estação era o Summer, nada mais justo, acham?

Já eram 21:00. O céu descortinava-se num luar belo, com a lua ao fundo e as estrelas complementando o firmamento como coadjuvantes não menos importantes. Como era sábado, não havia a grande poluição da urbe a por tormento na visibilidade dos astros brancos, já que boa parte da população descera as regiões litorâneas. Pensava: “Será que as estrelas do céu vão descer na terra?”. Boa pergunta. Cedo ou tarde, essa pergunta iria ser respondida.

21:15. O Paulista iria chegar a qualquer momento. Já havia trancado as janelas e as portas. Agora era só esperar. E quando nós fossemos para lá, era a nossa hora de brilhar.

De repente, eis que um vulto branco aparece na rua, como que a Virgem Maria estivesse em aparição, devotando-me a mim a missão de evangelizar o mundo caótico ou ditando alguma profecia. Não, não era nada disso. Era o Paulista.

- E daí Fred, beleza?

- Beleza, Paulista! E você?

- Também!

- ‘Bora pra festa?

- Vamos lá, meu filho! Não quero perder tempo!

 

E fomos indo rumo a casa da Lika, lá no fim da Dona Branca.

No caminho, fomos conversando sobre vários assuntos. Falamos desde a Copa vindoura, pensando em quem o Felipão iria convocar(“Cara, o Felipão tem que convocar o Romário!”, dizíamos), até a crise na Argentina e os panelaços que lá ocorriam. Tinha um primo meu que estava cursando medicina em Buenos Aires e ele volta-e-meia dizia que o país tinha virado na casa do diabo. Milhões foram parar ao léu das ruas da noite para o dia, vendo suas economias se despedaçarem ao sabor dos ventos tenebrosos do curralito. Protestos. Panelaços. Decisão da Copa Mercosul adiada. Enfim, a terra da prata tinha virado terra do latão.

Nesse ritmo de conversa vai, andada vem, chegamos em pouco mais de 10 minutos a casa de Aline Bittencourt, a Lika. Assim que chegamos na frente de sua casa, ela foi nos receber:

 - Oi, Fred! Oi, Lino! Tudo bem com vocês?

- Tudo, Lika! E você? – disse eu, um pouco alérgico devido ao clima.

- Tudo bem também! Fiquem à vontade, podem entrar! Se quiserem cerveja, tem na caixa de isopor e na geladeira, OK?

- OK!

A Lika era o tipo de guria “Raimunda”: disforme de rosto, mas bem servida de glúteo. Eu até pegava ela, mas ela tinha namorado na época.

Quando chegamos havia uma pequena quantidade de pessoas na festa. Até aquele momento, nenhuma guria servida dos dons de Afrodite a desfilá-los pela noite fresca de Janeiro. Vendo a escassez de gurias, fomos pegar umas latinhas de cevada líquida misturada com álcool, um certo composto feito de duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio e uma certa trepadeira de nome lúpulo, a fim de elevarmos nossas mentes a outras dimensões, como faziam os gregos nas suas festas em adorações aos seus deuses. Nessas dimensões, onde ninguém nos atormentará, eu serei dono do espetáculo e ator deste ao mesmo tempo, com todo o mundo como a platéia de honra. Enfim, a cevada faz a tensão e a ansiedade virarem cinzas, fazendo com que a noite possa ser, quem sabe, inesquecível.

Enquanto as Antarcticas iam, as pessoas chegavam à festa, para nossa alegria. Vênus nos brindara com belos exemplares do sexo feminino, todas bem servidas dos dotes que a deusa dera.  Cada uma mais bela que a outra. E se o cenário toma contornos de ânimo, o negócio é ir em frente e aproveitar. Melhor dizendo: hora do ataque. It’s showtime.

O primeiro alvo da noite era uma loirinha, olhos verde-esmeraldinos, baixinha, mas bem servida na região frontal. Eu já a conhecia: era amiga do meu primo, o Léo. Como bom estrategista, bebendo da fonte oriental de Sun Tzu, passei a mover minhas tropas naturais e fui para o ataque. Porém, na hora de dar o bote...:

 - Olha, Fred, eu acho você muito legal, mas é como amigo. Não sei como ficaria a situação caso a gente fique... Eu acabei de terminar com o meu namorado, mas to querendo voltar com ele, sabe como é, né... Então fica pra outra ocaisão, tá? Mas não fique triste, viu?

Foras são foras. Querendo ou não, você acaba levando um na hora em que você menos deseja. Fazer o que? Vamos em frente, porque já era passado metade do 22º giro da noite...

Até aquele momento, o Paulista já tava pegando uma guria. A sortuda era a Bianca, que estudava com ele no Opet. Meio seca, mas bem servida até...

De tanto me esforçar em busca do objetivo, precisava descansar um pouco. Meus soldados, esforçados em fornecer-me lucidez a batalha do amor, estavam desgastados, precisavam de energia. Afinal, não estamos no rigoroso inverno russo, mas estamos no causticante verão brasileiro. Mas a soldadesca não é como os canhões, que não congelam a Novembro, nem sofrem com o calor de Maio. Eles precisam de energia, para se manter na luta, pois isso é questão de parar ou morrer. Para isso, nada melhor que servir meu exército interno com uma boa dose do composto amarelo coroado de branco, inventado pelos sumérios mas celebrizado pelos bávaros. Peguei uma lata de Antarctica e me servi, fazendo meus subalternos reenergizados e prontos novamente para a batalha.

Após isso, eis que o esperado acontece... Uma guria aparece em meu campo de visão, bem dotada dos atributos de Vênus. Morena, olhos verdes, alta, corpo perfeito. Pensei: “É nessa!”

Fui, chamei ela, ficamos a conversar. Muito simpática, muito aberta. O nome dela era Silvana, e estudava no Santa Maria. Tinha acabado de completar seu décimo sétimo ciclo de vida há uma semana. Ela era mui simpática, tinha um quê de garota enriquecida a partir de palavras e sentenças, e não a partir de tecidos, cremes e pós, sempre usando alguma citação do mundo codificado que cabe a todos admirar... Sempre citando o bruxo do Cosme Velho, o Bardo Inglês, os poetas da maleita secular... enfim, de grande parte dos bastiões das boas letras... E isso me encantava profundamente. Que guria com tamanha beleza e tamanha inteligência eu iria encontrar num lugar tão insólito e incomum?

- Nossa, você deve estar achando que parece brincadeira uma guria saber tanto sobre literatura, não acha?

- Não, não é brincadeira; é realidade... pois, se os poetas tentassem se inspirar em você, com certeza fariam os mais belos versos já vistos...

-  Fred, você sabe muito bem achar as qualidades numa guria, sabia? Por isso, você é realmente especial, sabe...

 

E finalmente consegui alçar o objetivo daquela noite tão linda e graciosa que se aclimatava no ar e no firmamento, saboreando do rio caudaloso, saboroso e carnoso que eram os lábios dela. Rubros eram por natureza; mas citricado e limado eram os sabores deles. Através dessa sinestesia, era levado a dimensão mais alta possível, onde só os anjos podiam tocar. Era Cupido, vendo finalmente os seus dardos pontudos mágicos surtirem efeito em duas jovens almas, tão propensas as aventuras e desvelos por ele tramados nas suas altas residências... Assim ficamos por meio ciclo de hora; era já quase o apogeu do reino das trevas; ora tão obscuro, ora tão encantador. Ambos precisávamos de uma experiência maior, que transcendesse os limites do ósculo.

 

- Sil, não tem problema se você quiser ir lá em casa?

- Bom, não vejo problema nenhum, porque meus pais viajaram e só voltam na terça-feira... Mas, onde é que tua casa?

- A minha casa é perto daqui... é só chegar no final dessa rua e virar a direita, andar mais uns cinqüenta metros, e pronto, tá lá!

- Então, vamos, né?

- Vamos!

Naquelas alturas, a bebida não tinha resultado no efeito ultralevantador dos brios, devido as poucas doses que tomara. Lúcido, andei com ela abraçado pelas ruas do Pilarzinho, bairro que naquela ocasião ainda não fora tomado de todo pelos confrontos dos canos longos prateados e suas balas douradas chumbadas, que fazem a alma padecer e o sangue esvaecer de nossas entranhas, tornando-nos reles números de uma contabilidade maldita e perseguidora em nossa sociedade.

Chegando na minha casa, finalmente teria o prazer de ter uma cintura em meus quadris, tal qual como eu desejava há muito tempo. Para melhor desfrute dos prazeres táteis, fomos até a cama dos meus pais, já que eles não haviam chegado(eles passaram a noite na casa do meu tio, e eu nem vi o aviso na geladeira!) e a minha cama era de um young single. Além do mais, o leito parental era mais confortável que o meu. Assim escolhido, fomos para o palco de nossos amores, onde somos ao mesmo tempo platéia e atores do espetáculo tal qual como ele é. Quando deitamo-nos, passei a tirar a roupa de Silvana, quando a mesma interveio:

- Fred, pra essa noite ficar ainda melhor, quero que, antes da gente começar, você feche os olhos.

- Mas, pra quê?

- Calma, é uma surpresa; você vai gostar bastante.

Assim, ela assoprou em meus olhos um vento gracioso, com um som delicioso, tal como o rumor das águas num lago brilhoso. Imaginava-me como numa paisagem onírica, num desses grandes lagos da América do Norte, entre coníferas verdíssimas, montanhas deslumbrantes e um lago límpido, onde só eu e ela estivéssemos a nadar, sem desconfiar de nada e de ninguém. E, é claro, com o Deus Sol figurando belo no céu.

 - Você vai ter a melhor sensação que teve na sua vida! – dizia ela, ainda assoprando.

Ela assim assoprou o seu vento afrodisíaco durante um quarto de minuto. Depois, pediu para abrir os olhos. E quando os abri...:

 - Meu Deus, é impressão minha ou... ou... meu Deus, não tô vendo mais nada! Cadê você, Sil? – gritava eu, incrédulo no que acabara de acontecer.

Tentando encontrar a minha Afrodite Demoníaca, fui tateando em vão, esbarrando os mais diversos obstáculos físicos de minha casa: bidês, portas, estantes, sofás... Aí, resolvi partir para fora de casa; tentaria, a título de risco altíssimo, a sorte na bolsa de valores noturna de nossas ruas, onde qualquer ação comprada pode significar a ida para os terrenos celestiais ou a queda para os refúgios inflames. E ainda por aí continuei a esbarrar, primeiramente no portão de minha casa. Depois de reconhecido e aberto o supracitado, andei pela rua até trançar as pernas e cair no chão betumado de nossa cidade, tão mal conservado. Foi aí que me dei conta e vi que não estava inserido naquela realidade. Estava no leito de casal sim, mas não constatei nenhum arranhão em minha pele, nem meu globo ocular obstruído por uma tela branca. E ela, sim, ela estava ao meu lado...

Tinha me dado conta: os eflúvios causados pelo suco amarelo foram tão fortes que mal fizeram lembrar da noite maravilhosa que eu tivera, e sim da outra dimensão onde estava inserido após cair, cevado pelo prazer que eu tivera com uma digna ninfa.