A CANJA DE SABIÁS

Vida de caminhoneiro é muito boa. Hoje está aqui, amanhã em outro lugar, conhece pessoas, amizades nas estradas, sabem-se de outros costumes, histórias, mentiras, medos, enfim, muita coisa se aprende quando se anda por este Brasil afora.

Mas isto agora, com estradas asfaltadas, caminhões com todo recurso, vinte e quatro marchas até e todas sincronizadas – quem diria! – direção hidráulica, freios a ar comprimido que é capaz de parar um mundão de caminhão daqueles com a ponta do dedão do pé, embreagem assistida, ar condicionado na cabine, cama!... Minha Nossa Senhora!

Mas na época do Fuzil não era assim não. Estrada de terra poeirenta e cheia de buracos, caminhãozinho mixuruca de seis pneus, caixa seca com quatro marchas para frente e quem não tivesse um conta-giros nos ouvidos, arranhava todas; embreagem danada de dura e ainda tinha de dar duas ou mais pedaladas todas as vezes que ia passar uma marcha; merdinha de um motor a gasolina de sessenta cavalos, fervia que nem uma chaleira e de noite era melhor parar porque os faróis pareciam lamparinas.

Também, um carro feito lá nos Estados Unidos que, dizem, faz frio pra chuchu e vendido para esta terra quente do demônio, só tinha de ferver mesmo e muito. Lá em cima, como também na Europa faz um frio de gelar tudo. Fuzil lembra de ter visto muitos anos atrás umas fotografias da época da guerra, numa revista na qual se viam acesas fogueiras debaixo dos motores dos caminhões para aquecer e poder funcionar. Segundo também soube, se alguém botasse a mão sem luvas em cima da lataria, ficaria colada e somente soltaria se lá ficasse a pele.

Meio safado já começou a esboçar um risinho maroto. Perguntado por que da graça, ele disse:

- Já imaginou de manhãzinha os caras querendo botar o passarinho da Zorba para fazer “piu-piu...”

Mas caminhoneiro tem uma vantagem: amigos. Nas beiras das estradas faziam-se amigos, compadres, dormia-se sem despesas com cama e comida da boa e de graça. Nada de assaltos, roubos de carga ou assassinatos de motoristas. E se chegava a qualquer lugar, demorando mais que hoje, mas chegava.

Fuzil fazia a rota do nordeste. Gostava mesmo era da Bahia, tinha amigos lá, levava notícias do sul e lá estavam muito preocupados com a febre na baixada e eles não conseguiam entender, pois o Fuzil, muito moleque, dizia que a febre estava dando até nos paus. Ninguém conseguia imaginar uma árvore com febre, tremendo toda. Mas era uma expressão que se usava aqui na época e os baianos não a conheciam. Coisa do regionalismo deste baita Brasil.

Em Vitória era o lugar que ele mais ficava. Tinha lá um compadre e às vezes passava alguns dias antes de seguir viagem ou voltar para casa. Usava um radioamador vizinho para mandar notícias e falar com a família em horários combinados com antecedência lá na casa do Coré. Telefone não havia para aquela distância toda.

Naquela viagem teria uma novidade do casal ainda jovem. Eles teriam um outro filho. A comadre estava esperando. Alegria danada! Abraços daqui, dali, muito cuidado para não apertar demais a comadre que ainda nem estava aparecendo a barriga. O compadre mais macho ainda, segundo ele acreditava, espada dos bons. Não dava mole! Comadre bobeou com a tabelinha e caiu do cavalo! Mas tudo bem! Eles estavam mesmo querendo mais um filho e que seja bem-vindo.

Aquele resto de dia e princípio de noite foi puro papo furado. Casos, notícias, coisas daqui e de lá e assim por diante. Jantaram coisas da Bahia que a comadre já aprendera para agradar o compadre cansado de comer o trivial e ela sabia do que ele gostava. Eles se davam muito bem, colega de infância do compadre Fuzil se achava em casa.

No dia seguinte, a comadre não estava muita disposta. Comeu pouco e o compadre não conteve e perguntou se algo estava errado, se ela estava sentindo alguma coisa. Estava sim. Ela estava com desejo. Queria comer sabiás. Canja de sabiás!

Como é que o compadre iria arranjar tantos sabiás para a comadre matar o desejo? Será que ele também iria ao supermercado comprar codornas já abatidas e mentir para ela? Pediu para o compadre deixar a tarefa para ele, pois o seu fraco era pegar sabiás lá no sul. Ele conhecia as manhas todas. Mentira pura!

Lembrou que sabiá é tarado por pimenta malagueta. Ele estava na Bahia. Pimenteiras haveria às pampas por ali. Indagando, soube que no quintal havia um monte delas. Moleza!

Teria de bolar um truque, pois na realidade nunca pegara um sabiá na vida. Seria mole armar umas arapucas e ir juntando as bichinhas numa gaiola. Mas demoraria muito, pois com tantas pimentas ali nos arbustos, os sabiás não entrariam fácil debaixo da armadilha e ele achava que para fazer uma canja razoável, necessitaria de uns trinta ou mais pássaros. Poderia fazer uma cabana debaixo da árvore e com as mãos de fora iria pegando uma a uma, mas bicho-do-mato é esperto e iria ter de esperar uns dias para elas se acostumarem com a choça para depois ele entrar debaixo.

Resolveu então arranjar um saco muito grande em que ele poderia caber dentro, encheu com palhas e ficou parecido com uma tora de madeira. Colocou debaixo de uma pimenteira das maiores, cobriu a copa com um lençol verde, esperou uns dois ou três dias para os sabiás se acostumarem com o engodo, fechou bem as janelas e as portas e avisou a comadre e o compadre para não saírem do quarto e não fazer barulho. Numa madrugada retirou o pano, entrou dentro do saco, serrou a árvore e ficou com os braços de fora a segurando.

Pois quando a árvore já estava cheia de sabiás, com todo cuidado, lentamente, trouxe árvore e tudo mais para dentro da casa. Os sabiás que nunca tinham visto nem provado tantas pimentas maduras e graúdas como aquelas, somente perceberam o truque quando já estavam presas. Tinha pra mais de quarenta e de diversas espécies: laranjeira, da praia, una, poca... E para não mentir, havia até um bem-te-vi babaca junto!

E o compadre não perdeu a ocasião:

- Solta não, sô! Depois de depenado ela não vai saber se é ou não sabiá. Ferro nele!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 16/07/2009
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