A Humilhação Eterna

O ex-noivo de Adriana ligava para ela todos os anos, no aniversário dela. Adriana era a minha esposa.

“Adri, você vai atender o Sérgio?” – perguntou minha sogra.

Sempre jantávamos na casa dos sogros, nessas datas comemorativas. Ela me olhou, como sempre, semicerrando os cílios, com sorriso terno. Eu também devolvi a gentileza, a generosidade, cerrando os olhos como se dissesse vá, não se preocupe comigo. Era o quinto ano que fazíamos a mesma coisa.

Adriana e Sérgio namoraram por quase dez anos, foram noivos. Porém, se separaram amigavelmente por uma questão de “logística”. Sérgio mudou-se para Londres a trabalho e ali morou por 5 anos. Trouxe uma inglesa para o Brasil e estavam vivendo uma paixão internacional, segundo Adri.

Pelo que ela me contava, Sérgio era bem sucedido, razoavelmente rico, bonito, alto, educado, ufa, só possuo o ultimo item. Acho que sou uma pessoa legal, discreto, tenho ética. Porém, tenho uma vida (principalmente financeira) um pouco instável. Sérgio é diretor de marketing de uma multinacional sueca. Sou um artista. Pinto quadros, só de animais. Girafa, pingüim, hipopótamo. E vendo-os em diversos locais, em geral feiras de artesanato, mas já forneci até para uma escolinha.

Acreditava no meu talento, porém a família de Adriana, não. Mesmo assim, os pais dela não me rejeitavam, pois sou uma pessoa educada. E Adri gostava muito de mim.

Naquela noite, depois do jantar, ela estava um pouco diferente. Mexia muito no seu cabelo, lindo, castanho claro. Deitada na cama, mirava para o teto, pensativa.

“O que foi? Preocupada? Quer compartilhar comigo?” perguntei, entrando debaixo do cobertor.

“Sérgio está solteiro”.

“E aquela inglesa?”

“Voltou para Londres. Disse que não se adaptou ao Brasil.Violência.”

Adri gostava muito de mim, sabia disso, porém sentia que havia um resquício do Sérgio, num cantinho do coração dela.

Essa situação de dúvida me engessou, bloqueou. Não conseguia pintar nenhum quadro. Ela continuava com a vida “normal”. Tentava. E finalmente disse a ela, num sábado ensolarado, tomando café da manhã:

“Quer dar um tempo?”

“Como assim?”

“Para você pensar um pouco. Sei que o Sérgio está rondando a sua cabeça.”

De início, ela ficou furiosa, gritou que já o esquecera, e que havia achado o grande amor da sua vida (que era eu). Insistia a ela que o Sérgio possuía uma vida boa, estável, que ela merecia.

De tanto repetir isso, um dia ela realmente foi embora.

Passaram-se anos e aqui estou, vendendo meus quadros, na praça em frente a uma livraria, “megastore”. Continuo com as figuras dos animais. Tenho certeza de que um dia todos disputarão pelos meus quadros.

Um Audi prata pára em frente à praça. Desce um casal jovem bem vestido, Gucci, Prada de cabeça aos pés, exalando perfume caro. É Adriana! Fico cabisbaixo, sentado no meu banquinho de madeira. Caminhando como se não tivessem nenhum problema no mundo, o homem dá uns beijinhos na testa lisinha dela de tempos em tempos. Eles param para ver os meus quadros. Mergulho mais ainda a minha cabeça. Então esse é o tal Sérgio. Penso, humilhado. Espantada, Adri me olha, e a sua boca abre para dizer algo, ou tentando dizer algo...

“Não gostei muito desses desenhos, meio infantil” diz o seu marido, fazendo bico.

Porém, como se desejasse consertar algo, Adri diz: “mas gostei desse panda, até que é bonitinho, quero comprar”

“Vai colocar onde Drica? Não quero isso aí na sala, pelo amor de Deus!”

E eu digo, tranqüilo: “se não gostou...Não precisa comprar...não é?”

“Agente vai dar uma olhadinha ainda por aí” diz Adri, educadamente. Retribuo com sorriso, forçado.

O casal se afasta. E começo a pintar, possuído, com vigor, não esses animais bonzinhos de sempre, e sim, um leão. Um leão mostrando seus afiados caninos.

SEIDI KUSAKANO
Enviado por SEIDI KUSAKANO em 09/06/2006
Reeditado em 09/06/2006
Código do texto: T172423