O HOMEM SEM CORAÇÃO - Capítulo I

Mirtes vai à luta

Passos apressados, barulho ensurdecedor, buzinas estridentes, escapamentos irrequietos, obras na pista e uma multidão seguindo afoita pelas ruas. A confusão de ruídos é insuportável, os sons difusos e dissonantes criam uma densa massa sonora que penetra nas mentes contaminando as almas. Pressa, muita pressa, e mesmo que seja janeiro, mês de férias para muita gente, início do quarto ano do século XXI, a vida é acelerada na vultosa cidade de São Paulo. O estresse urbano atinge todas as pessoas que sofrem, irremediavelmente, os efeitos desgastantes da sobrevivência nesta gigantesca metrópole. São Paulo é dinheiro, cada qual que encontre uma maneira de ganhá-lo, a cidade costuma ser intolerante com os que não o têm. A agitação se faz presente com grande intensidade e em toda parte, desde os bairros mais distantes do centro da cidade que formam a interminável periferia paulistana, até os mais próximos do marco zero da capital, como é o caso do histórico bairro do Ipiranga...

– Meu Deus, o que farei desta sina! É só trabalho e mais trabalho, os serviços nesta casa não têm fim! Não nos divertimos, não passeamos, não viajamos e nem ao cinema sequer vamos mais! A Ana e o Mário estão aproveitando as férias em Ubatuba, até compraram um apartamento por lá. E a gente aqui, eu trabalhando feito uma condenada e você inerte nessa poltrona, lendo um monte de livros velhos que não nos levarão a nada, eles apenas nos distanciam das coisas boas que a vida oferece! Quando será que entraremos em sintonia com o mundo e sairemos desta ruína econômica na qual estamos enfiados? Será que algum dia poderemos dar um pouco de conforto aos nossos filhos, Alberto?

Alberto interrompeu a leitura, as belas poesias de Cecília Meireles poderiam esperar por alguns minutos, fixou o olhar por cima das lentes dos óculos na mulher e argumentou:

– Nossa Senhora! O que você quer que eu faça, Mirtes? Sou um educador, preciso dos livros, leio e ensino, dependo deles, você sabe muito bem! Estou sempre pronto a colaborar nas atividades domésticas, mas também trabalho praticamente o dia inteiro, não entendo o porquê de tamanha reclamação, Mirtes! O nosso problema é dinheiro! Dinheiro! A falta de dinheiro é o que nos leva a viver cada vez mais longe dos prazeres da vida. Faço o que posso, tento todos os dias encontrar uma maneira de melhorar a nossa situação financeira, viver com o minguado salário de professor da rede pública estadual não é fácil, mas acho que não devo fugir das minhas responsabilidades e, no mais, não me interesso por qualquer coisa que os outros façam ou deixem de fazer! Vai descansar, vai! Eu termino de varrer a casa.

Enquanto Alberto tomava posse da vassoura, Mirtes se sentou e, um pouco mais calma, voltou à razão: “Meu Deus! Estou prestes a enlouquecer. Não posso agir desta forma com o Alberto, ele não merece”, ponderou em silêncio.

A mulher sabia que não podia culpar o marido por todos os problemas por que passavam, Alberto era um homem do qual não se tinha do que reclamar. Trabalhava demais também, tanto no que dizia respeito à profissão que exercia, quanto nas atividades domésticas nas quais tentava se empenhar da melhor forma para ajudá-la. Ela não entendia como Alberto conseguia ler e se concentrar diante de tantos afazeres e interrupções que a vida doméstica proporcionava a ele, por diversas vezes via o marido lavando louças com um livro aberto sobre o balcão da cozinha, para ele não importavam as dificuldades, nada conseguiria tirar-lhe o prazer da leitura, era apaixonado pelos livros e pelas letras. Mirtes lembrou-se também de que até pouco antes do início das atuais férias escolares, Alberto havia ministrado aulas particulares de Literatura e Gramática para alunos que estavam em recuperação escolar e solicitaram-lhe os conhecimentos da nossa língua portuguesa como última tentativa de não perderem o ano letivo ou simplesmente para recaptularem os ensinos e aulas daquele ano, e mesmo que o professor não gostasse de cobrar pelo trabalho extra, pois achava que a educação deveria ser dada de graça e de forma abundante a quem dela precisasse, as aulas extras para alguns alunos de escolas distantes renderam-lhe alguns trocados que foram extremamente úteis no final de 2003, porém de vários alunos da escola na qual lecionava não cobrou um tostão pelas aulas de reforço, sabia que muitos deles não tinham condições econômicas para pagá-las, Mirtes admirava este lado solidário e prestativo do marido. Alberto era um homem calmo, paciente, educado e amável que qualquer mulher adoraria ter como companheiro e ela sabia disso. Arrependida pela explosão de nervos momentânea, dirigindo o olhar para o marido que ainda ajuntava e recolhia a poeira e a sujeira do chão, ela disse:

– Alberto, meu amor, me desculpe! Ando ultimamente muito nervosa, principalmente quando me lembro das dívidas que temos, cada vez mais estamos nos afundando nelas, estou muito preocupada com o futuro dos nossos filhos, com as coisas que ainda temos a conquistar, com a aquisição de uma casa própria, este ano apenas começa e a gente com as mesmas dificuldades e os mesmos problemas do ano passado, parece que esta situação nunca melhorará, sei que não devo descarregar todos estes problemas única e exclusivamente em cima de você, mas devemos compartilhá-los na tentativa de encontrar as soluções corretas para todos eles. Você é a única pessoa com a qual eu posso desabafar.

O professor sentou-se ao lado da mulher e abraçando-a carinhosamente, como se estivesse vislumbrando o futuro, disse:

– Um dia a nossa vida melhorará, Mirtes. Acredite em mim. Um dia eu sei que melhorará, sinto como se algo dentro de mim dissesse que um dia tudo vai melhorar.

– De que maneira, querido?

– Não sei. Não sei. Mas alguma coisa deve acontecer na nossa vida, não podemos agüentar esta situação para sempre.

– Alberto, você não está pensando em fazer nenhuma loucura, não é?

– Claro que não, Mirtes, você me conhece. Apenas acho que a vida dá voltas e muda constantemente, um dia ela também mudará para nós e, quem sabe, levaremos o resto dos nossos dias tranqüilamente até que a indesejada das gentes venha nos buscar.

– E encontrará lavrado o campo, a casa limpa e a mesa posta com cada coisa em seu lugar, querido?

– Bem, quanto ao campo e à mesa eu não sei, mas pelo menos a casa já está varrida.

– Alberto, eu te amo. – disse a mulher rindo-se do desfecho do diálogo mais prático que poético encontrado pelo marido.

– Eu também te amo, Mirtes. – retribuiu o professor.

Ainda sentado e acariciando o rosto da esposa, disfarçadamente Alberto viajava em pensamentos, era um homem inteligente e sensato, sabia que Mirtes tinha razões de sobra para se preocupar, ele também vivia tenso devido a escassez de dinheiro, mas dissimulava seu estado de espírito para não piorar o quadro de instabilidade emocional da esposa que ele tanto amava. Mirtes para ele sempre fora uma mulher exemplar, totalmente dedicada à família, com quem se casara havia quase quinze anos e que lhe dera mais três motivos de caminhar na luta por dias melhores: Rafael, o primogênito, tinha treze anos; Lívia, que muito lembrava os belos traços físicos da mãe, onze anos; e Alberto Monteiro Filho, o caçula Betinho, apenas três anos. Ultimamente, a vida não estava fácil, os vencimentos que o professor obtinha lecionando em escola pública estadual eram insuficientes para oferecer o mínimo de conforto à família que ano após ano passava por grandes dificuldades financeiras. O ano que havia terminado certamente foi o pior de todos, o último suspiro financeiro de 2003 foi a venda do velho carro que tinham, mas o dinheiro desapareceu rapidamente em meio às dívidas, sendo inclusive insuficiente para saldar um quarto delas. Os filhos maiores Rafael e Lívia que estudavam em escola particular, numa das melhores da região do Ipiranga, haviam sido compulsoriamente transferidos para a escola pública, na época da transferência o professor já não tinha como sustentar o pagamento das mensalidades da escola particular, além disso, como se fosse um consolo para abrandar a sensação de insucesso financeiro para com os filhos, Alberto que durante toda a sua vida docente apregoava, com muita sinceridade, que a qualidade da escola dependia muito da aplicação e do interesse dos alunos, pois que com o acumulo de conhecimentos estes se tornariam mais exigentes e curiosos, impulsionando a qualidade do ensino onde estivessem, não se cansava de repetir uma velha frase sua, talvez como forma de encorajar e motivar os filhos: “Há excelentes alunos em escolas públicas e péssimos alunos em escolas particulares”, tinha razão, mas no fundo, como um pai que deseja o melhor para os filhos, sabia das enormes dificuldades enfrentadas pelo ensino público dos nossos dias, não pela falta de dedicação dos zelosos professores que neste ofício se lançam com a nobreza da finalidade educativa, mas pelo descaso e a falta de interesse do governo que não vê vantagens em dar uma educação digna à população e atira o ensino público à sua própria sorte, justificando-se sempre pela eterna falta de recursos.

Enquanto Rafael e Lívia se entretinham em suas atividades juvenis, Betinho, o pequeno rebento, ocupava a mãe em tempo quase integral. Pobre Mirtes! O menino parecia dar trabalho por uma dezena de crianças, não parava um minuto e as suas travessuras atingiam as finalidades para as quais ele as realizava com extrema precisão. A mais recente mania de Betinho era a de atirar objetos no vaso sanitário para em seguida despachá-los pela descarga, sabonetes iam aos montes, escovas e cremes dentais também, enfim, tudo o mais que encontrasse pela frente, a porta do banheiro já não se tratava de obstáculo para o pequeno, enquanto esta pôde ser mantida fechada nenhum problema ocorria, até que o moleque descobriu que poderia utilizar-se de um inofensivo banquinho para alcançar a trava da porta. Pronto! Para Betinho a irreversível descoberta se fez. Alberto quase sempre era incumbido de consertar os estragos. Uma vez, Seu Pedro, o vizinho que era encanador, fora solicitado para retirar dois talheres de canos entupidos no banheiro, lá se ia mais dinheiro desperdiçado para reparar os estragos causados pelas peraltices de Betinho.

– O menino está com saúde e é isso que importa, deixa ele brincar, Mirtes! – dizia o pai.

– Brincar, sim. Destruir a casa inteira, não! Este menino parece um furacão! Deus me livre! – replicava a mãe vigilante e exausta, mas que sempre tentava ser a mãe mais carinhosa e compreensiva do mundo para o pequenino Betinho.

Mirtes andava esgotada, a rotina como dona de casa era estressante demais para ela que era uma mulher voltada para o mercado de trabalho, também neste aspecto 2003 havia sido um ano exaustivo demais, amava a família, amava o marido, amava os filhos e, sobretudo, amava viver, não media esforços para cumprir todas as tarefas do lar, apenas a situação financeira a incomodava, bancária desempregada havia mais de quatro anos, perdera o emprego na agência onde trabalhava pouco antes do início da gestação que trouxe ao mundo o pequeno Betinho, desde então, nunca mais havia conseguido resgatar sua dignidade profissional como economista. Durante muito tempo não houve currículo que não fosse entregue e nem concurso público que não fosse por ela prestado, por vezes até conseguira êxitos momentâneos que logo foram sufocados pelos preconceitos e burocracias do mundo moderno: “Desculpe-me senhora, mas o perfil do qual estamos precisando é outro, caso a nossa diretoria mude de idéia, ligaremos para a sua casa” – disse-lhe uma selecionadora. “Gostamos da senhora, mas, infelizmente, a vaga que havia foi preenchida ontem” – mentiu, certa vez, um gerente de recursos humanos. Mirtes estudou demais e classificou-se em dois concursos públicos, mas nunca fora chamada para qualquer um deles, soube pelos jornais que faltou verba para que o governo contratasse todo o pessoal que havia passado. No final das contas, ela chegou à conclusão de que para uma mulher desempregada, mãe de três filhos, com trinta e seis anos de idade, as chances de sucesso profissional na selvagem ciranda globalizada do universo capitalista eram praticamente nulas. Apesar de todas estas dificuldades, ela foi à luta, precisava ajudar o marido que já não sabia o que fazer para garantir o pão e o leite dos filhos, nascida no final do mês de março, esta ariana tinha a virtude de não titubear e não desistir nunca.

Como quem persevera de verdade sempre alcança o que deseja, talvez não da forma que Mirtes gostaria, mas da forma que tinha que ser naquele momento, no final do ano de 2003, para ser mais preciso no início do mês de novembro, uma vizinha, sua amiga de infância, que costurava roupas para uma pequena fábrica têxtil do Brás, fora para ela uma espécie de luz no fim do túnel: “Mirtes, eles não pagam muito, mas dependendo da produção o dinheiro aumenta, você sabe que eu tenho que criar o meu filho sozinha, pois o desgraçado do Rogério me abandonou e é da dignidade deste trabalho que ganho a vida”. Este exemplo tocou Mirtes profundamente. O ofício de costureira também a fazia lembrar sua falecida mãe Dona Rita, profissional da costura que fora muito conhecida no bairro da Vila Prudente, onde morou a família de Mirtes antigamente, que mesmo no fim da vida e constantemente adoentada não abandonou os serviços e, entre linhas e agulhas, satisfez a todos que a procuraram solicitando-lhe os préstimos, pouco fora o retorno financeiro, mas de grande valia fora a satisfação e o reconhecimento profissional de Dona Rita.

Foi difícil para Mirtes o início da nova empreitada, apressou-se como pôde, ressuscitou uma antiga máquina de costuras pela qual nutria muita estima, tratava-se do objeto de trabalho que herdara de Dona Rita, transformou a lavanderia nos fundos da casa em uma pequena oficina na qual pouco conseguia produzir durante o dia, pois tinha que se preocupar também com os trabalhos domésticos, os cuidados com Betinho e deixava tudo pronto para que Rafael e Lívia, quando estavam na escola, nada precisassem fazer quando chegassem, exigia apenas que os dois se dedicassem à leitura e aos estudos. Alberto se virava sozinho, ele a ajudava muito nos afazeres domésticos, o professor, sempre que estava em casa, lavava, passava, varria, cuidava de Betinho e, ainda, carinhosamente, conversava com os filhos adolecentes sobre os mais diversos assuntos, nestas ocasiões sobrava tempo para que Mirtes pudesse trabalhar por mais horas na oficina, porém as costuras que ela não conseguia realizar durante o dia, tinham que ser feitas à noite e, desde que se iniciou na nova atividade, eram constantes as noites e madrugadas em que Mirtes não dormia, atravessava-as costurando para que as encomendas fossem entregues nos prazos estabelecidos pelo patrão. E todos os dias, por volta das onze horas da noite, quando todos já estavam dormindo, inclusive e principalmente Betinho, a mulher atravessava a sala e a cozinha em direção aos fundos da casa onde estavam os fardos de roupas, ficava por ali, inúmeras vezes, até quatro, cinco ou seis horas da manhã. Em várias ocasiões, ouvia a porta do quarto se abrir, e:

– Mirtes, venha dormir! Se você continuar neste ritmo vai ficar doente, mulher! Deixe o restante para amanhã. – Era Alberto em mais uma tentativa de frear a incansável esposa.

– Não posso agora, querido! A fábrica precisa para hoje que os zíperes destes dois fardos de calças estejam pregados, já estou quase terminando, daqui a pouco irei dormir!

– Querida, eu sinto a sua falta, faz tempo que você não se deita mais como a gente fazia antes. A gente conversava um pouco sobre as coisas do dia, rezava e depois dormia, lembra?

– Lembro, Alberto. Mas eu já estou quase terminando os serviços que precisam ser feitos.

– Que horas são, Mirtes?

– Faltam dez minutos para as cinco horas.

– Nooossa!

– Vá dormir, Alberto! Não se preocupe, logo irei também!

Alberto, então, dava alguns passos, deitava-se novamente na cama, mas não conseguia mais dormir, no fundo de sua alma era inevitável a tristeza por entender que todo o esforço anormal do qual a esposa se obrigava era em decorrência da perda da valorização na sociedade da profissão dele. Ouviu dizer que antigamente ser professor era motivo de orgulho familiar e de respeito social, hoje em dia a categoria perdeu o prestígio, a motivação, a remuneração e tudo o que conquistou na tentativa de ensinar um país a ler e escrever decentemente, mas a culpa é de quem? Por fim, restava apenas culpar-se a si mesmo por amar tanto uma profissão, por se dedicar a ela e acreditar na utilidade de passar tantos conhecimentos para mentes ainda em formação.

A pior destruição para um homem é a perda da confiança e da esperança nas coisas em que ele acredita e Alberto, aos poucos, sentia como se o seu fim estivesse próximo.

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Vicente Miranda
Enviado por Vicente Miranda em 01/08/2009
Reeditado em 02/08/2009
Código do texto: T1730849
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