O HOMEM SEM CORAÇÃO - Capítulo II

O PSE

Ubatuba, litoral norte do Estado de São Paulo, lugar belíssimo, divinamente agraciado por uma exuberante vegetação litorânea que sobrevive à revelia porque teima em conservar-se impecavelmente linda em meio à destruição inconseqüente e contínua da agonizante Mata Atlântica, mais uma vítima da sagacidade mórbida inerente à intolerância humana. Aproveitando o clima quente e agradável do verão no litoral paulista e a paisagem perfeita formada pela união do verde vegetal com o azul do mar de Ubatuba, inúmeras pessoas curtem as férias de janeiro longe da turbulenta capital paulista. Entre estas pessoas há um casal caminhando e massageando os pés a cada passo dado nas areias quentes de uma das praias locais. O casal ruma distraidamente, oculto no meio de tantas pessoas, sem pressa e sem direção, enquanto conversa:

– Mário, está um dia tão gostoso que poderíamos tomar outro banho de mar antes de voltarmos, a água fica com a temperatura muito agradável neste horário da tarde.

– Claro, meu amor. Nós temos todo o tempo do mundo. Estamos aqui para nos divertir.

– Ótimo, querido. Tudo está muito bom. Se a Mirtes e o Alberto estivessem...

Mário interrompe imediatamente a frase, como se fosse intolerável ouvi-la por inteiro, e sem rodeios dirige estas palavras à esposa Ana:

– Vou pedir pela milionésima vez, Ana! Pare de falar do Alberto e da Mirtes! Eu não agüento mais essa sua preocupação obsessiva com os problemas deles! Que você se preocupe com a sua irmã até entendo, mas ela que viva a vida dela e não você!

– Mário, por favor, apenas me compreenda! A Mirtes é o único parente próximo que tenho. É natural que eu me preocupe com ela que está enfrentando tantos problemas difíceis, momentos ruins da vida.

– E daí? Por este motivo você vai se culpar por ter menos problemas e ela mais? Meu amor, culpe Deus, os anjos, o diabo, ou quem mais você quiser pela infelicidade dela, menos a si própria! Você não tem nada com isso! Quem deveria se preocupar mesmo é o Alberto, mas ele parece que não está nem aí, enquanto você fica bancando uma de “boa samaritana”.

– Não seja egoísta, Mário! – irritou-se Ana, agora parada no meio da praia, mirando severamente os olhos do marido – Será que você vai viver a vida inteira apenas olhando para o próprio umbigo, se você não se preocupa com os seus familiares, o problema é seu! Tente me entender! Todos os momentos que passamos juntos são ótimos, você sempre faz a diferença, mas eu apenas gostaria de ver também a minha irmã bem, gostaria que ela estivesse aqui, com o Alberto e as crianças, pelo menos para que se distraíssem um pouco, no entanto, nem carro eles têm mais! Será tão difícil para você compreender isto?

Sapiente no trato com a esposa, Mário seria incapaz de magoá-la mais ainda, Ana havia sido sincera e apenas demonstrava o que sentia, ele ponderou que no momento o que poderia fazer de melhor seria mudar de assunto ou calar-se. Ele era quase vinte anos mais velho que Ana, tinha cinqüenta anos e ela trinta e três, tinha também a experiência de quem já havia passado por um casamento desfeito em razão de brigas e desentendimentos, estes fatos davam-lhe a calma e o equilíbrio de quem não perde mais a razão frente a assuntos comezinhos da convivência conjugal, afinal de contas, sentia-se feliz ao lado de Ana em doze anos de união estável e sabia que a esposa era uma mulher sensível e que gostava demais da irmã, sendo natural e previsível a preocupação de Ana com os problemas intermináveis de Mirtes e família. Então, na tentativa de acalmar a mulher e abrandar aquela tensão que se propagou desnecessariamente pelo ar, podendo inclusive estragar aquela estada gostosa do casal em Ubatuba, Mário não viu outra solução que não fosse sugerir:

– Querida, mudando de assunto, vai de sorvete ou de chope?

– Acho que hoje prefiro chope, Mário.

– Então, vamos logo, antes que o chope esquente.

Caminharam uns dois quarteirões e chegaram a um barzinho que já havia sido testado e aprovado por eles em outras ocasiões, um lugar muito freqüentado na região próxima da praia na qual estavam. Mário chegou e já foi pedindo:

– Manda dois chopes no capricho, Liu. – Depois perguntou à esposa o que ela gostaria de beliscar para acompanhar a bebida, Ana sugeriu uma porção de batatas fritas. Mário aproveitando o mote para uma brincadeira, ainda tentando quebrar o clima de tensão devido àquela conversa na praia, soltou esta pérola hollywoodiana, eternizada pela banda Blitz nos “80’ s”:

– Ok, você venceu! Batata frita!

Aos poucos o clima foi se amenizando e entre um copo e outro, enquanto ouvia Ana falar sobre as belezas do lugar, Mário começou a se lembrava de como a conhecera, com que profundidade aquela mocinha prestativa e prendada que na época trabalhava como secretária de um colega dele, o velho advogado Dr. Luís, havia tocado o seu coração desde a primeira vez que a viu. Aquela jovem mulher era charmosa, encantadora e deliciosamente linda “uma menina dentro de um corpo esculpido de mulher” – pensava enquanto babava-se por inteiro quando a via. Logo, Mário passaria a desejá-la por completo, queria tudo com ela: casa, vida e cama, tudo naquela menina tinha um encanto gracioso, muitas foram as vezes em que ele aparecia no escritório do Dr. Luís sem mesmo ter o que fazer apenas para cortejá-la, olhava para Ana cada vez mais diretamente, fulminava-a mesmo com aqueles olhos de cachorro com fome que quer que a dona de a ele de comer, mas a jovem secretária parecia triste e distante, não lhe dava muita bola, tratava-o com a cordialidade que empregava para qualquer pessoa, muito embora, apenas esta cordialidade era suficiente para tocar o coração de um homem perdidamente apaixonado. Mário se lembrava de que naquela época havia alguma coisa que nunca ficou às claras incomodando Ana, quando meses depois perguntou a ela o que a deixava tão triste daquela forma, a moça disfarçou o motivo real dizendo que era impressão dele e que não estava triste, algo de que Mário nunca se convenceu, “talvez fosse solidão” – pensava – “depois que ficamos juntos nunca mais vi a Ana triste daquele jeito”, como respeitava a individualidade, os sentimentos e o jeito de ser da esposa, achou melhor não tocar mais no assunto, “cada pessoa carrega a sua própria cicatriz na alma” – refletia enquanto dava mais um gole no chope, e se um dia aquela menina esteve triste, agora ele não media esforços para fazê-la a pessoa mais feliz do mundo. No início do relacionamento foi difícil cativar a Ana, mas Mário a queria demais e sabia que aquela menina valeria qualquer esforço que ele empregasse, o tempo passou e Mário vagarosamente, dia após dia, foi ganhando a simpatia e o carinho da bela jovem, “o segredo é não forçar a barra” – era o lema dele na época da conquista – “mulher geralmente detesta homem pegajoso”. Os dias se passaram e Ana acostumou-se com o jeito de Mário que, então, começou a convidá-la para tomar um café da tarde um dia, no outro dia um sorvete, conversaram bastante sobre as coisas da vida, até que veio o tão esperado jantar à luz de velas num restaurante chique de São Paulo onde ele se declarou, acompanhado pelo sublime choro de dois românticos violinos propositalmente arranjados para a ocasião, perdidamente apaixonado por Ana, pediu-a desde logo até em casamento, “não há mulher no mundo que resista a tanto” – rememorava o que pensou no dia da conquista. Um ano depois já estavam curtindo os prazeres da vida a dois. “Desde então, como esta mulher me faz feliz, eu sempre precisei de alguém assim na minha vida” – concluiu a lembrança, sem notar que Ana falava já a mais de cinco minutos com ele:

– Alô, Mário aqui é da Terra! Mário, Mário, você não está me ouvindo? Terra chamando, câmbio!

– Hein? Ah! Desculpe Ana, eu me distrai relembrando a época em que nós nos conhecemos.

– Tá bom, mas não sai de novo do mundo, ta!

Na realidade, Ana trazia felicidade para Mário sim, no entanto, a mulher era para ele a segunda fonte de felicidade, a primeira era muito dinheiro guardado em gordas contas bancárias. O homem gostava de dinheiro. “E quem não gosta?” – indagar-me-ão por certo, ao que de pronto agora explico – o problema estava mesmo no fato de que Mário gostava mais de dinheiro do que todos nós, pessoas como ele não se importam com meios, contanto que atinjam os fins: dinheiro, mais dinheiro, muito dinheiro. Ainda jovem, Mário, enveredou-se pelos caminhos jurídicos, era advogado, pelo menos conseguiu um diploma e uma inscrição profissional, de que forma não se sabe, tinha poquíssimo conhecimento jurídico, até hoje ainda dizem as más línguas dos colegas de profissão que o diploma fora comprado e o êxito no exame para a obtenção da inscrição profissional, pura sorte. Constantemente tinha dificuldades no trato com os assuntos relacionados ao dia-a-dia da prática forense, via-se, então, obrigado a abandonar o seu escritório particular em busca de soluções nos escritório de outros profissionais, ou seja, advogados de verdade, as visitas ao escritório do Dr. Luís, por exemplo, eram constantes por este motivo também. Mário pagava almoços, dava caronas, distribuia a esmo sorrisos e tapinhas nas costas, porém o alvo das gentilezas eram sempre pessoas das quais precisava ou de que, numa eventualidade, poderia precisar, era um sujeito promissor, adorava a arte de fazer política partidária, tanto que era filiado, havia muito tempo, do PSE (Partido Socio-Educacional), um partido autoproclamado de centro-esquerda que defendia a educação como solução prioritária para a resolução dos problemas nacionais, mas no fundo, e o Dr. Mário, assim era conhecido e chamado pelos membros do partido, sabia disso, o que o PSE defendia mesmo eram as carreiras políticas para os seus filiados, carreiras estas restritas ao alto escalão partidário, e acordos que enchessem os cofres da legenda e a mantivesse no governo ou, pelo menos, próximo do poder. Algo lamentável, mas que, infelizmente, é um mal que acomete toda a política brasileira. Mário era mestre na rapinagem política, adorava a espectativa do dinheiro fácil, na última eleição, a de 2002, havia trabalhado nos corredores sombrios da política nacional, conseguiu com desenvoltura resultados positivos para o PSE, o partido elegeu inclusive dois governadores, três senadores e uns vinte e poucos deputados federais, além de mais de cem deputados estaduais espalhados pelo País, resultado modesto perto dos partidos que lideram a política brasileira, mas que indicava uma projeção no cenário político de um partido novo que ia ganhando força nas urnas, além de que, estas parcas vagas ocupadas por partidários facilitaria a obtenção de muitas vantagens por meio das tramóias diárias, nomeações e acordos vantajosos no Congresso e no Senado. Mário era tido pelo partido como o seu melhor articulador político, negociava com as pessoas mais insólitas e sórdidas que se possa imaginar nos porões ocultos do Brasil, assinava qualquer documento ou contrato sem pestanejar, na boa, por isso não lhe faltava dinheiro de procedência suja e desonesta, muito embora Ana e os familiares, que de nada sabiam, achavam que a sua atividade política não passava de pura assessoria jurídica para o PSE, e que todo o dinheiro que Mário obtinha era fruto de um trabalho honesto e honrado nos cartórios e tribunais.

– Mário, vamos embora?

– Você que sabe, Ana. Eu gosto de ficar com você em qualquer lugar. Quando estou com você, me sinto em paz.

– Mário, estive aqui pensando, acho que estou passando dos limites com esta preocupação com a Mirtes, você tem razão, eu não deveria me prender tanto assim à vida dela, isso não é normal.

– Querida, você é uma pessoa boa, sei que aí dentro deste peito bate um coração de ouro, isto é uma virtude, mas você sabe que eu fiz o que podia para ajudar o Alberto. Da sua irmã eu tenho pena, puxa vida como aquela mulher trabalha, meu Deus! Mas do Alberto, não! Ele não quer melhorar, acha que está tudo bem, é um irresponsável, não passa de um professorzinho bobalhão, se ele estivesse aqui com certeza enterraria a cara em algum livro ensebado em vez de curtir a vida, o mar, a praia e a natureza. Pelo que eu saiba, livros não pagam as contas de todo mês e nem colocam arroz e feijão na mesa de ninguém, principalmente aqueles livros que ele lê, aquele monte de romances, aquela literatura velha e ultrapassada!

A ajuda a que Mário se referia não passava do fato de ele ter convencido o professor Alberto a ser mais um filiado do PSE: “Meu querido Alberto, se você não defender os princípios inerentes à sua atividade profissional, ninguém defenderá. Veja só, você sabe da minha luta pela causa educacional e eu sou advogado, você sendo professor terá mais chance de defender a cultura e a educação, além disso...”, foi assim que Mário acabou convencendo o professor Alberto, que afinal de contas, mesmo não gostando muito de política, era um defensor ferrenho da causa educacional, a filiar-se ao PSE. A ajuda de Mário ao professor fora um presente de grego, lançou uma ovelha aos lobos, porque para o PSE era importante a obtenção de filiados que tivessem participação ativa no campo escolar, já que precisava demonstrar aos seus eleitores um quadro crescente e consolidado no meio educacional e muitos eram os votos obtidos pelos professores que se aventuravam em candidaturas, pois contavam com um enorme prestígio e carinho da sociedade, como se vê a ideologia educacional era apenas o pano de fundo do PSE e o pobre do professor Alberto não sabia disso. Voltando ao barzinho:

– Eu sei que você fez de tudo para ajudar o Alberto, mas ele é um sonhador, Mário, ele não acredita na política como única solução para os problemas educacionais e sociais, nem sequer sabe fazer política – salientou Ana.

– Ana, minha querida, nascemos fazendo política, crescemos fazendo política e morremos fazendo política. Esforcei-me para filiar o Alberto ao PSE e ele sequer compareceu a qualquer reunião do partido até hoje, não procura se engajar, conhecer gente influente, como pode um professor não se interessar pelos problemas relacionados à própria profissão que exerce? Deve ser por este motivo que a educação nacional está uma droga! Ele não corre atrás, não se importa e não liga para nada. Dez por cento do total do que os filiados obtém para os cofres do partido são repassados para os próprios filiados, podem ser contribuição para campanhas, donativos, enfim, qualquer maneira que se encontrar para angariar fundos em prol da legenda também beneficia quem se esforça por ela, entendeu? Agora fica o professor com aquele ridículo ar de intelectual pedante, achando que tudo em política não presta, ele não se ajuda!

– É... Nesse ponto você está certo.

– Não querida, eu estou certo em todos os pontos, ele precisa se esforçar mais, fica a mulher dele se matando de trabalhar, com três crianças para cuidar e ele sonhando, fora do mundo, parece que vive na lua! Ele precisa do partido e não é o partido que precisa dele! Espero que o mundo dê um chacoalhão bem forte naquele cara para ver se ele acorda, não é possível um homem viver daquela forma, se arruinando a cada dia, e tranqüilão, falando mole, prestando atenção no emprego correto de verbos e pronomes, com medo de errar na linguagem e errando na vida!

– Mário, desculpe-me por incomodá-lo com problemas alheios durante as nossas férias, prometo a você que não falarei mais sobre o Alberto e a Mirtes até o fim delas. Uma pessoa honesta, bondosa e trabalhadora como você, meu querido, deve aproveitar pelo menos um mês de sossego no ano.

– Ana, amo você! Pode falar do que quiser comigo que eu não ligo, apenas não quero ver sofrimento onde me esforço para semear felicidade e alegria. Aceita mais um chope, antes de irmos embora?

– Sim.

– Liu! Desce mais dois no capricho, por favor!

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Vicente Miranda
Enviado por Vicente Miranda em 02/08/2009
Código do texto: T1732369
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