Outro olhar...

Lembra agora, fora um dia de chuva miúda e claridade de prata. Saíra do médico, coração sufocado, como se uma mão gigante o apertasse. Ele fora claro, perderia a visão aos poucos, a doença já se instalara por muito tempo. O médico se mostrou surpreso com sua aparente frieza, mas ela era assim, sabia demonstrar alegria, a tristeza escondia sob uma capa de indiferença. Agradeceu e saiu depois de prometer voltar no próximo mês.

Já na rua uma aflição imensa a envolveu, junto com vento frio, que embalava as arvores das calçadas. Olhou as pessoas desejando fixar na mente cada rosto, cada expressão que apresentavam ao passar numa procissão apressada, sem imaginar o drama que ela vivia.

Sem se importar com frio se dirigiu ao mar, precisava vê-lo quem sabe pela última vez. Viu o vulto de um homem que caminhava pela praia como numa cena de um filme antigo; sua vista estava embaçada, sem perceber as lágrimas teimavam em toldar sua já pouca visão. Sentou num banco de pedra e por muito tempo ficou olhando o mar que se espreguiçava sobre a areia molhada. A noite chegou rápida e vislumbrou as luzes se acenderem enquanto barulho de buzinas a avisava, do torvelinho do transito.

Foi para casa lentamente como se temesse a solidão que a aguardava. Como de costume o porteiro a cumprimentou e ela conseguiu até sorrir lhe desejando uma boa noite. Abriu a porta e não acendeu a luz, como se inconscientemente quisesse se acostumar com a escuridão. Conhecia cada recanto de seu pequeno apartamento ali a luz não era tão necessária, pensou. Viu, ou melhor, percebeu os livros nas prateleiras da estante que tomava conta de uma parede inteira, sentiria falta dos vôos literários que fazia parte de seu viver diário, suspirou enquanto os dedos acariciavam seus contornos. Ainda no escuro foi até o banheiro e preparou um banho quente, enquanto a água esquentava foi até a sala de jantar e pegou uma taça enchendo-a com o vinho, lembrando de como se surpreendia com as nuances de cores que o “tinto” a brindava.

Sentiu um prazer dolorido ao contato com água mais ainda não se permitiu chorar como se o choro fosse um sinal de fraqueza.

Secou o corpo com cuidado e no escuro vestiu o pijama, queria dormir.

O vinho começou a relaxá-la e só agora percebeu o horror ao fechar os olhos, e se amanhã já não visse a luz?

Em desespero acendeu todas as luzes da casa, já não queria dormir, tinha medo de acordar e estar cega.

Sempre fora independente não gostava de incomodar ninguém não sabia nem como pedir ajuda, mas agora precisava dividir com alguém sua dor.

Absorta em pensamentos não ouviu o telefone tocar até que o clique da secretária eletrônica entrou avisando com uma voz que parecia não ser a sua: Oi, aqui é June, no momento não posso atendê-lo, deixe seu recado (...), de um salto pegou o aparelho e falou: - oi desculpe estava no banho, quem ta falando? Lisa é você? – Não eu não tou bem, vem me ver. - falou entre soluços.

Quase dez anos se passara desde então e ainda lembrava aquele dia como se fora ontem.

Só conseguira dormir quando já era dia e Lisa a ninava qual criança.

Muita noite passou, em agonia, temendo acordar.

Aos poucos fora se acostumando e tentando organizar a vida da melhor maneira que podia.

Aprendera Braille e conhecera outras pessoas em igual situação, descobriu um mundo diferente do que era acostumada, onde diversos dramas se desenrolavam, e que o dela era menor que muitos outros, que viera a conhecer.

Como o médico lhe falara perdera a visão aos poucos, hoje só consegue ver vultos, e já não existem cores, apenas sombras. Mas se sente grata em poder lembrar o mundo colorido e belo que conheceu.

Jacydenatal

04/18/2009