Perfumes e escrúpulos

- Não posso continuar assim!

As pessoas olharam, e Cláudia se deu conta do pensamento em voz alta. Baixou os olhos, a vergonha de então misturada à antiga - justamente a que deu vez ao desabafo - e ao remorso de iludir a si mesma.

Conhecera Álvaro há dois anos; há um dia menos que isso tornaram-se amantes; cerca de três semanas depois, a notícia impossível. "Sou casado, amor." E mais: "Eu sei, eu sei, não devia ter me amarrado tão cedo, ela nem era a mulher certa para mim! Então, conheci você... Mas tem o Alvinho, ele vai sofrer tanto! Desculpe, amor, deveria ter contado tudo antes..."

Claudia ficara em choque:

- O que foi que eu fiz, meu Deus, para merecer tamanho castigo? Sempre tive tanto cuidado, nunca quis nem amizade com meus colegas casados, e então, isso! Minha mãe, minha avó, até uma prima que ficou louca, sofreram por causa de 'outras', e agora eu, 'a outra'... E tem o Alvinho, meu Cristo Jesus! É demais, eu desisto, eu morro!

Ele calado, cabisbaixo, num contraponto inútil e necessário; Cláudia levantando-se da cama, o suspiro fundo... Amava-o tanto! A sugestão de Álvaro caiu como uma espécie de benção:

- Olhe, podemos dar um tempo... Para o Alvinho se acostumar, entende? Faça isso por mim, amor! Por nós?

Desde então, vinham se encontrando periodicamente, em locais pouco movimentados ou na casa dela. Dando um tempo. Nas vezes em que ela pressionara, Álvaro tinha o argumento: era cedo, Alvinho ainda não estava pronto, sofreria muito. Cláudia recuara, sem entender bem o porquê do próprio medo: poderia perdê-lo, mas não o possuia realmente...

Mas agora ela queria definições: que tudo fosse aos ares, aos diabos! Por acaso ela mesma não sofria também, desde que soubera do desastre?

Para ela o tempo de espera havia acabado; era chegado o Tempo de Decidir. Tinha inclusive comprado o uisque preferido dele, e fizera o assado de panela que ele adorava. Não custava nada dar uma ajuda ao destino. Então, a depilação cuidadosa, o corpo hidratado e macio, aquele perfume (uma fortuna!)... E Ela.

E Álvaro:

- Perdoe, amor. Você nem imagina como me dói, mas tem o Alvinho... Mas eu entendo você, e respeito sua posição.

E não telefonou mais, tampouco encontrou-a por acaso pelos lugares cúmplices.

Durante um período, Cláudia passou de mão em mão, de boca em boca, como que em abstinência de sentir. Um dia acordou com fome de chocolate, cheirou as cores do mar, e comprometeu-se novamente consigo mesma.

Muito tempo depois, numa festa, avistou Álvaro ao lado de uma loura bonita, elegante e simpática - nem de longe um arquétipo.

A coincidência: no vestíbulo do banheiro, as duas borrifando-se com o mesmo perfume, um lançamento recente. Daí trocaram impressões sobre moda e maquiagem, os elogios recíprocos. Cláudia despiu-se de qualquer inveja.

- O que você usa nos cabelos para manter o brilho? Por que é louro natural, não é?

- Engraçado, todo mundo pergunta se é pintado, mas é efeito de xampu de camomila, só. Não tenho frescura, sabe? Nem tempo de ficar cuidando...

- Acho que filho ocupa demais, mesmo.

- Não sei, ainda não tenho filhos. Meu marido diz que é cedo, que me quer só para ele por mais um tempo. Não é um encanto?

A aliança de Cláudia com Cláudia rompeu-se.

Atualmente tem procurado namorado na Rede - mal sobra tempo para cozinhar - mas ainda não mudou de perfume.

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 12/06/2006
Reeditado em 19/07/2022
Código do texto: T174370
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