O VELHO DA LUA

O VELHO DA LUA

Não precisava ser noite de lua cheia para ele colocar o velho paletó preto e dar suas passadas a frente da casa onde Mestre Dico morava.

Volta e meia sem ao menos alguém perceber ele passava despercebido por outras pessoas, mas o Mestre sempre o via passar. Nem ao menos uma palavra saia dos lábios do velho que não parava, e não havia quem lhe perguntasse algo.

Estranho é quando ele não aparecia, era de desconfiar.

Saber o certo porque era chamado de velho da lua ninguém sabe explicar, mas há quem acredite que ele descia de vez em quando para fazer companhia e ajudar alguém a contar a estrelas.

Um dia passou por duas vezes em frente ao Mestre.

Na última vez o Mestre largou a agulha de remendar redes, acendeu um cigarro e pôs a imaginar mil coisas. Fez uma viagem no tempo, Foi muito longe, tão longe que lembrou dos velhos tempos da Praia do Izidoro onde fora criado. Lembrou da paixão que brotou no coração quando avistou a jovem Maria em frente a velha casa da avó Maria dos Anjos. Foi um momento único, inesquecível, atraídos por forças inexplicáveis.

Namoraram, noivaram, casaram.

Começou a saga de um casal que desejava crescer juntos, ter filhos, adquirir bens, viver de maneira simples, mais viver bem.

Mestre Dico ousou em enfrentar os mares, foi sempre corajoso e confiante naquilo que almejava..

Tornou-se o Mestre Dico de altos mares e de forma inteligente conduzia o barco e seus subordinados, sempre atentos a todos os passos.

Em 1966, exatamente no dia 20 de março teve sua maior alegria, a chegada do primogênito, via-se em seus olhos o brilho de felicidade quando descia do Gordine cinza que buscara Maria na Maternidade.

O primeiro filho, o estímulo para a luta continuar, a estrada era comprida e cheia de atalhos, mas tinha como bandeira o trabalho. Era sábio em decisões, ativo em seus compromissos e defensor da família.

Vieram dias de angústias, de incertezas, de abnegações. Um dia sem ninguém ao menos esperar o Velho da Lua passa sobre as águas e num descuido do condutor do barco, tudo é lançado ao fundo.

Foram momentos de torturas, de inquietações, momentos que apenas Mestre Dico soube segurar.

O barco afundou, foram jogados aos fundos sonhos, esperanças levadas pelas águas profundas do mar.

Todos se salvaram! Todos continuaram a labuta pela sobrevivência.

Mestre Dico sobreviveu, mas teve que responder por erros de manobras, da irresponsabilidade de outros. O mar continuava a bater forte nas pedras. Era do mar que as famílias do Porto tiravam seu sustento porém, Mestre ficara impedido de continuar sua jornada.

Era admirado por qualidades que trazia em seu âmago, passava a ser exemplo de luta. Mestre Dico não desistia fácil, tinha o tino de luta dentro de si, era marujo de outros mares e não baixava a cabeça para o azar, sabia que o Velho da Lua podia aparecer outras vezes, mas ele tinha sua missão e havia de cumprir.

Decididamente deixa a terra natal. A casa de madeira construída em Canto dos Ganchos, pintada de cor verde nas paredes e de brilho de verniz nas aberturas mostravam o capricho e o zelo que ele tinha por tudo. Mesmo assim teve que deixar tudo para trás, e recomeçar em outros lugares. Desfez de seu maior patrimônio material para cobrir dívidas e mais do que isso, manter a integridade, a fidelidade aos compromissos.

Foram dias difíceis em Itajaí. Mas o recomeço endossava a vida com sabor de luta e desejo de vitória.

Ao lado a fiel e sempre companheira que estava presente todos os dias.

De Itajaí a Navegantes novas mudanças, novos desafios.

Ali pertinho da casa da Senhora dos Navegantes ouvia sem cessar o sino chamando todos os dias, para o encontro com a Senhora dos Navegantes.

Maria depositava sua fé aos pés da Mãe Maior, da Mãe Piedosa, que transformava a cada dia os caminhos de tortuosos daquela família que já não mais estava desamparada.

O tempo passou! As nuvens caminharam em outras direções, o sol voltou a brilhar e na linha do horizonte novos barcos navegavam.

Num deles estava Mestre Dico que após o cumprimento daquele momento dolorido, tendo que passar entre a cortina negra, via um novo momento renascer, via a cortina nova da luz se abrir.

O palco onde começavam todas as peças era imenso, era azul, era salgado, era o mar. Nesse palco muitos se despediram, muitos conquistaram glórias, outros colheram flores sem vidas e vidas ceifadas pelas águas que tragaram centenas de companheiros.

A vida continuou, Mestre Dico incansavelmente lutou.

Cumpriu sua missão no mar, mesmo nunca deixando de ser pescador.

Criou ao lado da esposa seus seis filhos e via os netos aparecerem um a um, enchendo a casa, rolando no quintal, agarrando a bola que rolava solta em frente da casa.

Ali em frente onde todas as manhãs encostado ao muro trabalhava no remendo de redes de pesca. Ali via os companheiros passarem, os filhos saírem e chegarem. Dali onde ouvia o apito do navio que adentrava rio acima. Navegantes acordava depois que Mestre Dico acordava. A cidade começava seus movimentos, seu barulho, a correria e Meste Dico ali pertinho da Igreja, separado alguns metros do Rio, via tudo isso acontecer.

Mas nesse dia de dezembro, quando o velho da lua ousou em passar mais de ma vez por ali, Mestre começava a sentir que estava se distanciando dos seus. Preferia o silêncio de sempre, aquele silêncio que mantinha nos momentos difíceis.

Sentiu uma falta de ar, “faltou vento” como costumava dizer. Mas ninguém queria ver Mestre Dico partir. Correram todos, fizeram o impossível, mas o vento que lhe faltava no peito era o mesmo vento que lhe ajudava a subir. O Velho da Lua não teve piedade de ninguém, o Velho da Lua levou MESTRE Dico para pescar em outra dimensão.

*Tributo ao Mestre Dico.

Uma homenagem a Valmor Graciliano Baldança.

Professor Miguel João Simão

Historiador e Escritor.