CARACARÁ

Naquela época havia muita gente morando na roça e as pessoas orgulhavam-se de somente ir à venda comprar sal, querosene, tecido e outras coisinhas poucas que não poderiam ser mesmo produzidas na fazenda. Lá no terreiro teria o porco engordando na ceva para fornecer gordura, torresmo, carne, linguiça e chouriço; galinhas, para pôr ovos e fornecer carne; patos, perus, cabritos e por aí afora.

Dona Zizinha era uma dessas mulheres de fibra. Enviuvou cedo e tinha uma família grande para criar, mas disposição e vontade não lhe faltavam e sabia como contornar, levar sozinha a sua tarefa. Como todos, tinha o terreiro cheio de criações; horta de dar inveja, cafezal, enfim, tudo do que precisava e ainda sobrava para ajudar alguém mais necessitado.

Mas a vida não nos é dada de presente e estamos conversados. Há desditas, há tropeços, há pedras no caminho e não somente uma como já disse o grande poeta Drummond. Dona Zizinha enfrentava um tremendo problema com o gavião caracará que achou muito mais fácil ir lá ao quintal dela pegar quantos pintinhos ou galinholas quisesse sem ter de gastar uma tremenda quantidade de energia voando atrás de rolinhas e pombas que davam um baita sufoco nele. Pousava na paineira e ficava de olho: bobeou, tá no papo e além do mais, ficava pertinho da pedreira do Arria Saco, onde ele morava.

Como na confraria todos solicitavam e todos sempre estavam dispostos a ajudar, aquela senhora pediu ao tio Pedro se poderia caçar o ladrão safado. Negócio de ecologia não funcionava muito naquela época e mesmo que assim fosse tudo tem um limite. A velha tinha dificuldades na vida e não estava ali para dar vida mole para gavião nenhum. Se ele quisesse viver em harmonia com o pessoal de lá, que fizesse o que era normal, mas para cima dela, de jeito nenhum. É “bacho”! Como sempre dizia o tio Pedro (nunca mais ouvi ninguém mais usar esta expressão. Seu sentido seria semelhante a “é ruim, heim!”).

Tio Pedro se prontificou e convidou o seu cunhado para ir também. Niquinho nunca havia caçado, mas para atirar num gavião enorme a pouca distância ele deveria servir. Também se não quisesse atirar, serviria de companhia. Tipedro era caçador afamado e, segundo ele, se apertasse o dedo em cima, o bicho ficava. Não errava nunca. Assim ele garantia.

Chegando ao local, procuraram esconder-se o melhor possível, pois gavião é bicho arisco e, dizem, capaz de pressentir o cheiro da pólvora e nem aparecer. E assim ficaram à espreita. Nada de gavião. Niquinho, não acostumado às mazelas de um caçador, já estava ficando impaciente e tio Pedro acalmando-o, dizendo ser assim mesmo, nem toda caçada é do caçador e nhenhenhém danado que não estava dando muito resultado. Às vezes até ralhava com ele.

Gavião nada. Niquinho impaciente. Tipedro de saco cheio e já arrependido por tê-lo convidado. De repente o Niquinho cutuca-o nas costelas e aponta em determinada direção. Tipedro olha e não vê nada, ou melhor, não vê gavião nenhum e nunca iria imaginar o que aconteceria a seguir. Niquinho mais impaciente ainda disse que ia atirar assim mesmo porque não era possível o Tipedro não estar vendo aquele bando enorme de galinholas, tava a fim de gozá-lo etc.

- Galinhola? Você não vai atirar nas galinholas da Dona Zizinha, vai Niquinho? Pelo amor de Deus!

- Não tem gavião, vai galinhola mesmo! Acho que até eu tô no lucro!

- Não faz uma coisa dessas, rapaz! A mulher pediu para a gente vir aqui matar o bicho que está dando um baita prejuízo a ela e você quer matar as galinholas? Deveria então deixar o gavião continuar comendo os pintos, homem de Deus!

- Eu não vou sair daqui sem dar um tiro, Pedro! Tem graça nois ficá aqui a tarde toda com cara de broa! Tapa ou ouvidos que o berro vai sair!

Um enorme ronco se fez ouvir. Tipedro virou-se e viu um monte de penas esvoaçando. Ficou estupefato, parado, não imaginava que ele fosse fazer aquilo. E Niquinho calmamente pegou uma, duas, três, sei lá quantas galinholas e enfiou embornal adentro. Sobraram ainda duas. Segurou-as pelos pés, e se dirigiu ao tio Pedro:

- Tome! Leve estas. Tão gordinhas que só vendo. Tão beleza! A velha é caprichosa mesmo!

- Não vou levar nada! Você parece doido! Como é que pôde fazer uma coisa dessas, rapaz? Tenha santa paciência!

- Não quer não? Então eu vou jogar fora, seu “viado”! Tio Pedro ficou ainda mais ofendido por ter sido chamado de veado pelo Niquinho. Mas não era nada ofensivo, era um hábito seu.

No dia seguinte ele recebeu uma tigela cheia de galinhola prontinha preparada pela Totola, sua irmã e mulher do Niquinho. Ele estava sentado na escada da cozinha que dava acesso a sala e levantou-se para ir até o fogão pegar um graveto aceso ou uma brasa para acender o cigarro e palha. Perguntei se ele comeu a carne.

- He! He! He! Tava cheirando à beça. Totola cozinha muito bem, você sabe! Pensei cá comigo: já tão mortas mesmo; boca cheia d’água, e... Mandei pro bucho! Deu uma paradinha, virou-se rápido e com o dedo em riste:

- Você quer saber mais de uma coisa? Eu não queria que aquele “viado” me chamasse de “viado” outra vez! É “bacho!”

Dbadini
Enviado por Dbadini em 17/08/2009
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