Empate

(Para FK: que me fez rir e que me fez chorar).

“Não te tocar, não pedir um abraço, não pedir ajuda, não dizer que estou ferido, que quase morri, não dizer nada, fechar os olhos, ouvir o barulho do mar, fingindo dormir, que está tudo bem, os hematomas no plexo solar, o coração rasgado, tudo bem.”

(Caio Fernando Abreu, em “Garopaba Mon Amour”, Pedras de Calcutá.)

- Eu perdi um amigo. - ele disse de repente.

O outro olhou um pouco assustado. Então levantou de leve as sobrancelhas, mirou-o com o olhar morto do mundo moderno e deu-lhe um sutil aceno com a cabeça, como se dissesse “tá bem, estou interessado”.

- Perdi um amigo. Um daqueles. Perdi um amigo que um dia julguei ser o ar que eu precisava pra viver. E é tão engraçado: tenho vivido. Eu perdi um amigo - não qualquer amigo. Não seria a primeira vez, eu já perdi amigos antes. Por distância, por um afastamento dos caminhos da vida, por desinteresse ou preguiça de torná-lo mais próximo. Agora assim, um amigo daqueles, foi-se de mim por empate. O empate zero a zero, que a gente tenta e tenta e não consegue nada. Pode ser um a um ou dois a dois também. A gente acha que conseguiu, que marcou, que vai dar tudo certo, mas acaba bobeando e leva um também sabe? Aquela certeza que agora tudo se perdeu. Não há mais tempo para toda aquela luta atrás de se por à prova outra vez. Não adianta.

O outro ouvia.

- Já perdi amigos antes. Quando ninguém lutou um pouquinho a mais, o pouquinho suficiente pra um “correr atrás”. Perdi amigos por negligência de alguma das partes, por falta de compatibilidade não declarada. Mas dessa vez foi diferente. Doeu mais, doeu demais. Nessa vez não foi qualquer um: foi O AMIGO, artigo e letra maiúscula, aquele que por diversas vezes considerei a pessoa mais importante da minha vida. Mais que família, mais que namorada, ouso dizer. Não sinto falta dele.

- Não?

- É... Estranho né? Como disse, eu tenho vivido. Achei que morreria. Morreria sem ele. E estive pensando, acho que vivia num cubo, preso entre quatro paredes que ninguém via, nem eu mesmo. Talvez eu as tenha criado. Ficou eu vivendo assim, feito mão de mímico encontrando certeira um obstáculo no ar. A vida tem desses apoios, dessas muletas invisíveis. Culpamos, culpamos e não nos deixamos ser sós porque sabemos que não podemos assumir toda a responsabilidade. Essa responsabilidade por nós mesmos. Pelos erros. Pelo que a gente faz vir a ser a nossa própria vida.

O outro ainda escutava. Placidamente distraído ou confuso.

Apoiou a cabeça na mão direita.

- Falaram-me uma vez sobre fazer-se ausente o suficiente para que sintam sua falta, mas não o bastante para que te esqueçam de vez. Talvez ainda não tenha chegado o momento de sentir falta. Faz pouco tempo. Você acha que talvez esse momento já tenha passado e ambos tenhamos caído no esquecimento?

O outro deu de ombros e gesto lateral rápido de cabeça, cruzando as pernas.

- Talvez sim, talvez. Talvez a gente tenha caído no esquecimento, mútuo e total. Deu-se o empate. O jogo acabou.

Fez uma pausa. O outro não disse nada. Prosseguiu:

- Dói perder assim. Assim sabendo. Que eu tive um amigo que era refúgio. Ombro. Apoio, tapa na cara, bofetão na orelha, alfinetada no coração. Mas ouvido pros meus lamentos todos. Perdi. A voz que me dava conselhos, opiniões, xingamentos - às vezes até bem colocados, sabe?

- Sei.

- Eu tenho as minhas loucuras e confusões, todo mundo tem né?

O outro fez um aceno com a cabeça e permaneceu calado. Ele fez um breve silêncio. Sentado, com as mãos entre as pernas, deu uma olhada em volta. E continuou:

- As paredes. Vê essas paredes? Elas estão mais brancas desde que. Desde que perdi. Os descascados. Brancos, não cor de forro. A sala ficou mais ampla. Sobrando espaço. De repente tem a ver. Com. Você sabe. Eu tive – tão difícil ficar falando no passado quando tudo é tão presente – eu tive; tive um alguém pra matar a solidão de todos nós. Sabe, aquela história de sozinho na multidão, sozinho com outro alguém sozinho e toda a dor se funde e eles viram um só, juntos e ainda sozinhos no mundo. É possível ser sozinho e feliz? Sozinho-sozinho, não sozinho com alguém?

O outro tomou um gole de café, deu de ombros. Pegou uma revista da mesa de centro.

- É um pouco velha, não liga. Faz tempo que eu não saio. Então não comprei nenhuma nova.

O outro sorriu e fez um gesto com a mão, como um não tem problema não.

- Eu confesso que perdi os ouvidos pras minhas loucuras e confusões. Mas admito que eu também perdi críticas afiadas. Um causador de mágoas. Acho que críticas de desconhecidos são críticas amenas se compradas às críticas de alguém que você gosta muito. Porque você, mesmo sem notar, quer que lhe tenham orgulho. Quando você ama você quer ser bom pra quem você ama. Pra ser amado também. Porque amar sozinho dói demais... Não foi um jogo limpo. Foram muitos ferimentos, concussões, golpes baixos. Sangrentos. Antes as paredes eram mais coloridas. Acho que eram vermelhas. Vivas. Pecadoras.

- Que?

- Nada. Disse que acho que antes de se tornarem brancas as paredes eram vermelho vivas.

- Vermelho?

- Sim, vermelho.

- Vermelho tipo sangue?

- Acho que sim. Vermelho-vermelho mesmo. Não sei. Esquece essa coisa toda da parede. Não vai entender mesmo. Elas eram assim, ficaram assado. Mudanças. Mudam as cores todas, feito o verão que é azul amarelo, o outono que é laranjado e marrom. Depois a primavera, sempre achei meio rosa e roxa. E o inverno. É negro. Cinza. Branco. Mas não sei, isso é um ponto de vista e ninguém precisa concordar. Só que tudo ficou maior. Eu fiquei pequeno.

Longa pausa. O outro levanta a cabeça, a revista ainda no colo, acende um cigarro. Traga, dá mais uma olhada. Nada acontece, volta para a revista.

- Estamos em agosto.

- Estamos, diz sem levantar a cabeça.

- É agosto. Meu aniversário vai chegar, sabia? Ele não vai estar ao meu lado. Duvido que telefone. Que escreva. Vai lembrar sim. Não sei se com desdém. Com um riso de desdém. Ou negligência. Talvez realmente não lembre. Ou, talvez; seria melhor se lembrasse e fosse com dor. Não que deseje que sinta dor, não é isso. Mas foi tanta coisa.

Tanto suor empenhado neste longo jogo. Eu mereço essa dor. Eu mereço sim, eu sei. ... Vai ser um domingo. Domingo vermelho de agosto. Cinza e vermelho. Todos os anos os agostos iam e vinham e ele estava comigo. Agora ... agora não sei mais como as coisas serão. E não digo que me arrependo. Não me arrependo de tentar, de pedir, de chorar. Porque eu tentei, na luta que houve antes do gol que não existiu. Não me arrependo nem mesmo de desistir. Desisti um pouco antes do tempo esgotar, admito. Porque eu admito a minha fraqueza. A minha desistência. O meu desapego. Eu tive motivos. Motivos são coisas bobas com o passar do tempo. São mesmo.

Eu era o único que conseguia entrar naquela cabeça-dura, tomar os comandos. Explicar, igual se explica pra criança, como são as coisas, como funciona o mundo. Então os pregos afrouxavam. E ele conseguia olhar de outro jeito. O mesmo alvo, sob outro ângulo. Porque ele era persistente. Porque ele tinha uma força, assim meio mística. Uma força de ser engraçado e sério, bobo e corajoso. E quando tudo não era mais piada, ele sabia pôr os pontos, fazer os diálogos, resistir e lutar. Mas ele nem sempre era forte e então eu trazia todas as forças pra ele. Eu as juntava pelos cantos e lhe dava. Com prazer, com vontade. Com preocupação. Com amor... é. ...

E desta vez. Nesta última vez. Eu estava esgotado demais. Usado, usado demais pra juntar as forças pra ele e também pra mim. Eu corri muito, cansei. Usado e gasto demais pra conversar, pra discutir, pra convencer. Dizem que eu não escuto, mas é mentira. É que eu não tolero arrogância, eu não tolero que achem que sabem mais do que eu mesmo o que é que eu penso, eu sinto, eu acho. Eu não gosto de ser mal-compreendido. É umas das piores, senão a pior, sensação do mundo, quando pegam as suas palavras e as mexem, as transformam para dar na sua própria boca um outro sentido que não o que você teve a intenção de. Sabe, agora eu não me arrependo. Mas eu sou aquele tipo que tem história. História, tipo sina, de se arrepender de tudo. E eu não sou o único não, desde tempos imemoriais isso acontece. Eu vou me arrepender. É difícil viver sempre sabendo que o arrependimento chega, cedo ou tarde. Aí aquela coisa invade, aquela angústia toma. E não importa o que. Não importa a decisão tomada. Se tivesse sido decidida a coisa exatamente oposta, seria então justamente ela que bateria na porta oferecendo os tormentos. Então. Então você assimila. Porque depois de um tempo você acha boba toda a história de negação. As feridas mal cicatrizadas espalham pus pelos atalhos mal-escolhidos, e todos os caminhos seriam atalhos mal-escolhidos sabe, e aí é que você decide pegar a agulha, a linha, e fechar tudo isso, com uma sutura perfeita.

Nesse ponto você já revia velhas fotos e pegava-se constantemente recordando e contando as velhas histórias. Pros outros numa mesa de bar. Chega o momento, então. Você escreve uma carta, uma carta explicando o que foi que houve, em que sentido errou – porque você errou – e lhe atribui a mais absoluta razão, atitude bem rabo-entre-as-pernas-por-favor-eu-não-me-importo-só-me-perdoa, justifica culpas sem necessariamente tê-las e silencia sem calar. Faz exigências. Aí não sei, porque não cheguei nesse ponto e eu não sei as conseqüências. Talvez vivamos felizes para sempre. Talvez se perceba que o jogo termina realmente, que só se desiste uma vez e que atalhos são pra sempre.

- Uma vez eu li que toda estrada tem retorno, ou um troço assim.

- É? Você acha? Porque sabe, eu tento ser otimista.

O outro sorri, comovido.

- É, eu falei que a vida tem dessas muletas! Fico pensando se. Se é... se é realmente necessário, sabe. E que mesmo com a perna bamba, a vida ainda sangra sabe? De intensidade, não de pureza. Antes eu não sabia, eu só confiava. Ainda não sei, mas também não confio. Solidão pode ser um medo bobo que eu possa superar. Afinal das contas tem ... é ... Tem morte. A gente pode morrer das feridas do jogo, mas pode morrer atropelado saindo do estádio. Não é? Acho que as coisas findam. O tempo da luta, o momento de se chegar lá. E não são preciso cartas nem velhas histórias, só a força pra superar isso tudo. Suturar a ferida sem ter que mexer nela. Eu tenho vivido, achei que morreria. Mas meu deus. Meu deus. Eu fico me perguntando o que é que eu faço com essa dor.

Anna P
Enviado por Anna P em 17/06/2006
Reeditado em 03/07/2006
Código do texto: T177506