Escritoras

A madrugada de sexta passou rápida. Uma cerveja, um lanche de mussarela esquecida há muito na geladeira e alguns livros. Raskólnikov me ajudou a virar a noite, mas às cinco da manhã só o tédio e o sono me acompanhavam. A madrugada sufoca a gente e eu queria ser sufocado.

As pálpebras estavam pesadas, pensei eu: “não se dorme ao amanhecer” e apanhei um livro; apanhei outro; outro e outro; nenhum me interessou: não li nenhum. Lembrei de um conto da Márcia Denser. Procurei algum livro dela; não achei. Também, não procurei com tanto empenho, estava cansado e com muita preguiça para isso. Voltei a me deitar no sofá e fiquei recordando o que já lera dela. Gosto das mulheres que aparecem em sua obra: fortes e loucas. Não demorou muito para surgir a imagem dela em minha mente. Dela, digo, da escritora. As personagens também surgiam, mas vinham sem carne, sem matéria e quando eu tentava desenha-las na imaginação aparecia a escritora de lábios vermelhos carregados.

Imaginei os seus dentes manchados de batom. A imagem começou a me seduzir e quando me dei conta não era só imagem; era um porre, uma embriaguez de todos os sentidos, sinestesia, sei lá: o diabo. Ouvia sua voz rouca falando uma outra língua. Era a língua dos anjos – era doce -, mas falada com escárnio. Voltei a fitar os seus dentes manchados de batom e os beijei. A princípio notei um gosto de morango, morangos silvestres que sutilmente se tornavam amargos. Pouco tempo depois meu paladar estava mergulhado em Hollywood e êxtase.

Ela estava fria, serene, enquanto eu a beijava fitava seus olhos também abertos. Olhos negros, maquilagem pesada escura como a borda de um poço fundo em meio a névoa londrina. Os olhos concentrados e inertes olhavam para dentro. Seu corpo bailava a música dos oceanos, como se carregado levemente pelas ondas. O tempo passou e não percebi; a vertigem continuava. De súbito um urro que desencadeou rugidos. Ela era uma fera e rugia. Seus sons guturais me pareceram fingidos. E de fato eram, ela era uma fingidora e sentia dor.

Acordei; já era dia. Coloquei o café pra esquentar; peguei um charuto na estante e o acendi na varanda. Era um dia incrível, o céu estava cinza e o vento era frio e intenso. Só em dias assim, como estes, eu acredito em Deus. Enquanto tragava o charuto me veio na mente a face gélida da Clarice Lispector.