Arrumação

Eu vi aqui, tenho certeza que eu vi aqui. Olha, estava do lado da chave, quer ver? Onde está a chave? Espera, eu sei que deve estar aqui, em algum lugar... vou olhar na gaveta das bagunças, acho que coloquei ali na pressa, estava perto da carteira, aquela carteira vermelha, sabe? Não sabe? A carteira vermelha... espera, vou procurar...

Não, não sei mais onde coloquei a carteira. Confesso, eu ando distraída. O que você quis dizer com esse sorriso? "Como assim, ando", você perguntou? Tá bem, eu sempre fui distraída, mas e daí? Você nunca ligou pra isso, no começo achava até um charme, e só porque agora você precisa urgentemente do documento que estava ao lado da chave que estava perto da carteira que eu tenho certeza absoluta que coloquei ali, em cima da mesinha, você vem com essa ironia toda!

Olha aqui: acordo de manhã, arrumo as camas, troco as crianças, levo para a escola, ainda volto e lavo a louça; depois, vou pro trabalho, maquiagem acabando com minha pele e salto alto acabando com minha coluna, agüento chefe chato e colegas ciumentas, almoço três folhas de alface pra não engordar, tomo água o dia inteiro porque me disseram que precisamos de dois litros por dia para renovar as células - e aí fico indo ao banheiro a cada dez minutos porque não há bexiga que agüente armazenar um Atlântico por hora... e depois disso tudo, ainda chego em casa, tenho que fazer o jantar, dar banho nas crianças, agüentar seu mau humor sem reclamar e ir dormir cedo porque estou morta de sono e cansaço... e há quanto tempo a gente não tem uma noite decente, ou melhor, indecente nesse quarto?

Tá certo, é da vida, é do cotidiano, mas esse cotidiano está acabando com minha memória. Ou será que é proposital? Será que foi você que perdeu o tal documento e fica colocando a culpa em mim, afinal culpa atávica é feminina mesmo, e uma a mais, uma a menos não vai me fazer a menor diferença? E por que você vem com esse ar petulante, queixo empinado, perguntar quem mexeu nas suas coisas? Por que é que você mesmo não separa e guarda o que é seu, ao invés de pedir para que eu faça isso?

Você quer saber quem mexeu nas suas coisas? E eu pergunto: quem mexeu nas NOSSAS coisas? Cadê aquela paixão, aquele fogo, aquela compreensão, aquela tolerância... onde será que colocamos? Quem mexeu na nossa vida? Quem mexeu nos nossos sentimentos? Foi o excesso de tempo, foi a falta de tempo, foi o dia a dia? Foi nossa displicência, nosso descuido?

Nós precisamos mexer em tudo, e é agora. Vamos mexer nas nossas certezas, no nosso cotidiano, levantar o tapete e colocar a poeira por cima. Espanar, varrer, limpar... e espirrar até expurgarmos todo o pó ou morrermos de alergia. Vamos mexer em tudo, tenho certeza que acharemos a carteira, a chave, o documento, a antiga paixão, a atual indiferença, e talvez outras coisas que se perderam no triângulo das permutas, essa linha imaginária formada entre eu, você e a realidade... Vamos mexer nas profundezas, vamos nos mexer até nos encontrarmos de novo - ou não nos encontrarmos nunca mais!

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Quem Mexeu no Meu...

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