MARIA

Nascera Maria, filha de um casal de pequenos sitiantes que fazia parte do minúsculo povoado que não tinha mas de três arruados de casas pobres e a igrejinha de Santo Antônio, pequenina e branca cuidadosamente conservada pelo velho padre Ambrósio, que para lá fora muito jovem e casara e batizara quase toda a população de gente humilde e piedosa daquele recanto do sertão nordestino.

Maria fora a escolinha, nos fundos da igreja, como quase toda criança da época. Revelou-se, logo cedo, inteligente e perspicaz, destacando-se entre as demais crianças. Estudara o catecismo e fizera a primeira comunhão. Se tomara moça bonita e na sua brejeirice atraia os olhares dos rapazes do lugar.

Um certo dia, durante as festas de Santo Antônio, conheceu um moço de um sitio distante, que dela se enamorou e logo quis falar com seus pais, firmando compromisso.

Segundo informação do padre Ambrósio, era moço direito e trabalhador, filho de pais honrados e religiosos, seguindo fielmente os preceitos da igreja católica.

Depois de um curto período de noivado casaram-se na igrejinha de Santo Antônio sob as bençãos do padre Ambrósio, como não poderia deixar de ser.

Maria e seu marido trabalharam com afinco no seu pequeno sitio, plantando milho, feijão, batata e outras culturas da região, além de criarem galinhas, cabras e porcos. Dali tiravam o seu sustento e até vendiam o restante da colheita. Os anos foram passando e quando já tinham três filhos, começou o prenúncio de uma seca em todo o nordeste, que segundo diziam, seria muito prolongada e uma das piores dos últimos tempos.

Todas as pessoas da região procuravam se prevenir, construindo barreiras e cacimbas para estocar água, guardando os grãos da colheita daquele ano e plantando alguma lavoura de crescimento rápido, como feijão de corda (fradinho), abóbora, chuchu, etc.

Chegou o fim do ano, começou janeiro sem nenhuma chuva. Esperava-se o mês de março, mais precisamente 19 de março, dia de são José, com esperança de chuva para o plantio de nova safra, mas nada, nem uma nuvenzinha no céu todo azul, com sol incandescente durante o dia e as estrelas brilhando mais que nunca a noite.

Passaram-se os dias, as semanas, os meses. Durante todo o ano e nem uma gota de chuva. Foram secando as frentes de água. Nos açudes nem aguas para os animais. A plantação foi secando, virando palha, os animais emagrecendo. Os de pequeno porte iam sendo mortos para garantir alimento para as pessoas mais próximas. A água para as necessidades mais básicas era trazida de muito longe, em horas e horas de caminhada. Logo foi preciso reduzir a alimentação para apenas duas vezes por dia e depois para uma vez. As crianças eram quem mais sofriam, pois as cabras magérrimas não davam mais leite. 0 filho mais novo, com apenas um ano de idade morrera, vitima da pouca alimentação e doenças afim e os outros estavam só pele e osso.

Diante daquela situação, o marido de Maria resolveu ir para o Sul, arranjar trabalho, antes que visse a família morrer de fome. Maria que estava grávida do quarto filho concordou com a decisão.

Um mês depois nasceu a criança, já bastante frágil. A mãe conseguiu amamentá-lo com o pouco leite de seus peitos, já tão mirrados que mais pareciam duas bolas murchas.

Passados alguns meses o marido dera a notícia de que estava trabalhando e apesar de ganhar pouco, já estava arranjando lugar para receber a família, com poucas possibilidades, mas melhor do que morrer de fome e sede.

Maria foi falar com o padre Ambrósio e ele informou que dentro de um mês sairia do porto da capital um navio com destino ao sul e apesar de ser um cargueiro, iria levar alguns retirantes para o sul. Ele iria tomar as providencias para embarcar ela e os filhos, com o pouco dinheiro que o marido havia mandado aos cuidados da paróquia.

Maria falou que o filho mais novo estava doente e que talvez não resistisse até a data do seu embarque. 0 padre Ambrósio então lhe disse: " Filha, se a criança morrer, você deve se resignar, pois é a vontade de Deus. Ela é ainda um inocente e irá para o céu e estará feliz cantando no coro celestial". Ela respondeu-lhe: " Não quero um filho anjo, cantando em coro no céu, onde não posso ir. Quero filho junto de mim, que eu possa abraçar, beijar, ver crescer e que um dia eu venha a ter nos meus braços o filho do meu filho".

Seca no Nordeste. Sol implacável, matando a vegetação, secando as fontes d'águas, dizimando os animais. Todos tentam fugir pelas estradas barrentas, procurando inutilmente sobreviver em outro lugar.

Em uma cidade portuária, repleta de retirantes, no cais do porto há um navio, um Ita, no qual está embarcando muita gente com destino ao Sul. Entre os vários grupos surge uma mulher com três filhos pequenos, vestindo farrapos e visivelmente subnutridos, que vão subindo a prancha de embarque, com um brilho de esperança no olhar. 0 encarregado de liberar o embarque, depois de examinar as crianças, deteve-se diante da que estava no colo da mãe e disse que ela não podia embarcar com aquela criança, pois a mesma estava morrendo. Maria olhou com desespero para os dois filhos agarrados à sua saia e rapidamente desceu a prancha arrumou os cueiros em torno do corpo esquálido da criança apertou-a contra o peito, beijou a face macilenta do filho agonizante, colocou-o na calçada do cais e embarcou chorando com os dois outros filhos.

Lucilia Cavalcanti
Enviado por Lucilia Cavalcanti em 28/09/2009
Reeditado em 29/09/2009
Código do texto: T1836365
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