O DONO DA CAVEIRA ( A Vespa Vermelha)

Chego em casa depois de um dia exaustivo de trabalho, abro a porta e ela está ali à minha espera e logo começa a zumbir, esvoaçando em torno da minha cabeça, incessantemente. Inutilmente tento espantar a incômoda vespa vermelha. Sei o que ela quer. Hoje tomei a resolução de contar-lhe a minha história e acabar de vez com esta desagradável presença zumbidora.

Filho único de um casal de trabalhadores de uma fazenda do interior do Estado, logo cedo executava pequenos serviços na Casa Grande, onde era tido como cria da família. Fui crescendo naquele ambiente e naquela servidão. Já mocinho servia de garoto de recado do patrão, sem nenhuma paga pelos meus serviços, a não ser a comida e as roupas usadas que não serviam mais para os seus filhos. Várias vezes fui à Capital com a patroa, quando ela ia visitar os filhos que estudavam internos em um importante colégio de padres. Ela aproveitava para fazer compras e eu carregava todos os pacotes das coisas mais variadas que ela comprava. Porém para mim, nem um alfinete.

Com quase dezoito anos, acompanhava o patrão, às sextas-feiras, quando ele se reunia com os outros fazendeiros vizinhos para jogar baralho. Como sempre, eu ficava lá servindo café, bolos, cachaça e charutos durante toda a noite e também não recebia nenhum centavo pelos meus serviços extras para todos e isto me causava uma certa revolta, se bem que passageira, pois logo reconhecia a minha condição de cria de coronel.

Muito tempo se passou e uma certa sexta-feira, como habitualmente, reuniram-se os fazendeiros na mesma cabana de caça que ficava na fazenda do meu patrão, já no limite de duas outras fazendas.

Jogaram quase toda a noite e já de madrugada, quando as apostas iam altas e alguém estava perdendo muito e todos já estavam bastante altos pela ingestão de grandes doses de cachaça e outros afins, resolveram jogar tudo em uma aposta inusitada. Combinaram que todo o dinheiro da mesa seria de quem tivesse coragem de ir ao cemitério buscar uma caveira. Fez-se silêncio. Depois de alguns minutos o fazendeiro que mais tinha perdido, topou a aposta. Nessa altura, eu disse ao patrão que já que o jogo havia terminado, eu iria para casa dormir, ao que ele consentiu. Porém , em vez de ir embora, fui sorrateiramente ao cemitério esperar o apostador. Ocultei-me atrás de um túmulo e quando ele se aproximou e pegou a primeira caveira, eu falei com voz fanhosa: “essa não que é de meu avô”. Ele largou a caveira e pegou outra. Novamente falei: “essa não que é do meu pai”. Já bastante assustado largou a segunda caveira, mas foi imediatamente pegar a terceira e mais uma vez falei: “essa não que é minha”. Muito apavorado disse: “não importa que seja de quem for” e saiu correndo. Eu o segui sempre gritando com voz cavernosa: “essa é minha, essa é minha”, até que ele entrou na cabana e gritou para todos, jogando a caveira em cima da mesa: “está aqui a caveira, mais o dono vem ai atrás”. Todos ouviram o meu tropel e a minha voz fanhosa repetindo: “ essa é minha, essa é minha”. No auge do apavoramento, todos saíram correndo, cada um em direção de suas fazendas, deixando para traz todo o dinheiro. Confesso que minha intenção era só assustar os fazendeiros, mas diante do desfecho, entrei na cabana, recolhi todo o dinheiro e escondi em lugar seguro.

O patrão e os outros fazendeiros fizeram um pacto de não contarem para ninguém o ocorrido, pois tinham receio de serem chamados de covardes. Alguns dias depois o patrão pediu para que eu tocasse fogo na cabana com tudo que tivesse dentro, o que eu fiz com muito gosto.

Ao completar dezoito anos, disse aos meus pais que queria ir para a Capital e tendo o consentimento deles, pedi permissão ao meu patrão, que me deu dinheiro para as primeiras despesas. Já na cidade grande, instalado em um modesto hotel, saí a procura de trabalho e fui direto a uma loja de artigos religiosos, onde entrei certa vez com minha patroa. Procurei o dono e pedi emprego. Ele disse que precisava de um auxiliar para trabalhar na oficina e perguntou se eu tinha prática. Falei que aprendi a moldar o barro, com meu pai, para fazer utensílios domésticos e até pequenos brinquedos para criança.

Ele me admitiu e me ensinou a arte de fabricar santinhos, de pintá-los com as devidas cores e assim fui ficando um ótimo santeiro.

Quando estava bem entrosado na arte e no comércio de artes sacras, propus sociedade ao meu patrão e com o dinheiro daquela sexta-feira, que havia guardado até então, tornei-me fabricante e comerciante e não mais empregado. O meu sócio que era bem velho e não tinha nenhuma família, falecera anos depois e assim tornei-me dono exclusivo do negócio, pois a parte dele ficara para mim, de acordo com seu testamento.

Mudei o nome da Loja para “O DONO DA CAVEIRA”, e continuo trabalhando.

Meses atrás voltei à fazenda para visitar meus pais, que agora vivem felizes em sua pequena propriedade rural que comprei para eles.

Quanto ao fazendeiro, meu antigo senhor, já com mais de sessenta anos, nunca mais pegou em um baralho, deixou de fumar charutos e não bebe mais nenhuma bebida alcoólica. É agora um perfeito pai de família, rodeado de filhos e netos.

Falou-me em segredo, que todo ano manda celebrar missa para o dono daquela caveira.

Esta é a minha história, Vespa Vermelha! Vê se pára de zumbir nos meus ouvidos!

Lucilia Cavalcanti
Enviado por Lucilia Cavalcanti em 28/09/2009
Reeditado em 29/09/2009
Código do texto: T1836370
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