(imagem FiatLux.blogger.com.br)                                            



                                                   VIDAS PARELAS

 
 
          Jamais souberam, mas eram eles no saguão do hospital quando pequenos. Ela era então apenas um bebê, um minúsculo volume em cobertores nos braços da mãe que sentada aguardava pela volta do marido em um táxi. Ele, um menino magrinho esgoelando-se depois que e enfermeira aplicou-lhe o antitetânico na perna esquálida. A ele a mãe ainda tentou fazer notar a presença do bebê, mas naquele momento o medo aumentava a sensação de dor provocada pela agulha da seringa. O ferimento provocado pelo prego enferrujado fora tratado e em lugar do sapato havia no pé uma artística proteção em gaze.

          Eram também eles alguns anos depois no pátio da escola. Ela ao lado da mãe já saindo do estabelecimento sem terem conseguido a matricula por falta de vaga. Ele passando por elas em desabalada corrida, chegando atrasado para mais um dia de aula.

          Vidas paralelas ou quase, porque bem mais tarde notaram a existência um do outro. Aconteceu quando eram mocinhos e ele se apaixonou perdidamente por ela. Foi uma coisa assim, sem começo, sem um momento a partir do qual soubessem que estavam namorando. Não houve um pedido, não houve um ‘eu aceito’. Foi só então que as duas famílias tomaram ciência da existência uma da outra. O arremedo de namoro não foi muito longo. O pai dele foi transferido e com o pai foram todos para outros ares. Ele a levou no coração e a distância que os separava o machucou terrivelmente.      
  

          Ao contrário de outras mães de mocinhas, a mãe dela precisou de várias novenas para empurrar a filha a passeios. O primeiro amor a manteve com o coraçãozinho machucado por longo tempo. Começou finalmente a sair com as amigas, participou do baile ao completar quinze anos de idade. 

          Aos jovens de hoje faltam informações sobre os bailes de debutantes do passado. Agora as luzes coloridas simplificam tudo na tentativa de tornar a comemoração mais excitante. Era naquele tempo um acontecimento inesquecível, quando várias famílias, em uma noite especial, apresentavam suas filhas de quinze anos à sociedade.  Cada menina tinha direito à escolha do elenco de eventos.

          A ela foi oferecida uma festa completa, chique, cheia de glamour, em um clube de elite. Primeiro houve a recepção dos convidados, o coquetel e o jantar. Na recepção dos convidados a garota usou um vestido bonito e simples, cheio de detalhes infantis. Em seguida houve o cerimonial dos quinze anos, muito lindo; abertura do cerimonial, entrada do cortejo de familiares, entrada dos príncipes para a apresentação, Recebeu muitos presentes incluindo pulseiras e colares, joias que lhe vieram pelas mãos do avô emocionado. Por último, o baile com orquestra. Usou depois da meia noite um lindo vestido de gala com o qual dançou a valsa com seu pai. Deixava assim de ser menina para se tornar uma mulher. Nas lágrimas que derramou existiam componentes de diversas emoções; alegria, gratidão e a incurável dor da ausência dele ao lado dela naquele que até então era o dia mais importante de sua vida.

          Ela, a partir se seu ‘debut’, se tornou apta a freqüentar reuniões sociais, a usar roupas mais adultas e teve permissão explícita para namorar. 

          Não! 

          No início não houve um namorado que não fosse ele, naquele arremedo de namoro. E ele apenas de quando em quando aparecia para vê-la. Recebido em casa, saia com ela para reuniões sociais encontrando-se ele em um grupo que lhe era absolutamente estranho, falando sobre acontecimentos dos quais não participara, programando eventos dos quais ele não participaria. Ele não estava presente na lembrança que ela guardava dos melhores momentos de sua vida.
É verdade, fez-se amigo dos amigos e das amigas dela, com eles participava eventualmente de eventos diversos e em verdade se divertia. Mas havia nele a insegurança natural. Ninguém vive o tempo todo sem alguém com quem compartilhar momentos de alegria ou de dor. Mais dia, menos dia, ela acabaria saindo com outro que lhe estivesse fisicamente mais presente. Também ela passava por dificuldades nesse sentido e lhe doía perceber que ele algumas vezes era reticente em relação à sua vida pessoal. Não gostava de perceber que ele se mostrava solicito às suas amigas e não tinha certeza quanto ao futuro daquele relacionamento.

          Não! 

          Não houve um momento em que de maneira civilizada e adulta tenha um dito ao outro que o namoro faleceu. Do mesmo modo que não houve um começo, um momento marcante para lembrar o início, não houve também um adeus, com pisadas duras no chão, com lágrimas furtivas, com chagas nos corações. Ninguém soube ninguém viu. Eles simplesmente deixaram de se encontrar. Ele simplesmente deixou de vir e ela simplesmente deixou de sentir aquele friozinho no estômago ao ver chegando o ônibus que ao longo do tempo o trouxera tantas vezes e tantas vezes o devolvera ao mundo.

          O tempo trouxe um amarelo com manchas na fotografia que ele guardou na carteira de couro e que acabou colada ao plástico transparente. 

          Ele voltou algumas vezes, mas não mais a viu. A casa onde ela havia morado já não existia e pelos arredores ninguém parecia ter ciência de que ali residira aquela família que fora tão conhecida. O tempo transformou as paisagens pelas quais haviam passado quando mocinhos e a ele ficou muito penoso passar sozinho por aquelas ruas por onde, feliz, ela passara com ele. Para evitar o sangramento de suas feridas ele parou de vir.

          Mesmo assim, ao longo da vida, soube a respeito dela esporadicamente ao encontrar-se com antigos conhecidos. Teve ciência de que ela era mãe de duas filhas, de que as levava ao parque nas manhãs de sol e que eram lindas meninas coradas. E soube, muito depois, que uma das meninas se casou fixando residência em algum ponto no centro dos Estados Unidos da América do Norte.
Vez por outra sabia a respeito dela por sonhar com ela e as imagens dos sonhos misturavam-se com as que lhe vinham à mente quando alguém, muito de quando em quanto, a ela se referia trazendo notícias ou por ela perguntando. Eram interlocutores sempre contando uma ou outra passagem dos tempos distantes nos quais ela aflita esperava por ele, em pé no portão, desculpando-se perante as colegas que insistiam em que também ela fosse ao baile. Não ia. Permanecia aguardando em pé no portão, mesmo alguns anos depois que ele havia parado de vir. Mesmo depois que, com os pais, passou residir em outro bairro.


          Ele sempre soube que os sucessos que obteve sem cessar nunca foram suficientes para minorar o imenso vazio que sentia em sua vida. Nunca encontrou outra pessoa ao lado de quem sua alma se sentisse tão leve e tão feliz. Nunca. Nunca se prendeu a coisa alguma, nem a ninguém. Granjeou estima, enriqueceu, garimpou em várias áreas no mundo dos negócios. Conheceu inúmeros países, percorreu mares e oceanos, sem jamais sentir a sensação de ser realmente feliz.
Cansado, sem os pais, sem ninguém de seu sangue a seu lado, doente, foi aconselhado por seu médico a dispensar a governanta e passar a residir em uma casa de repouso. Ali teria com quem conversar, teria assistência profissional permanente e melhor qualidade de vida.

          Por si mesmo não teria aceitado. Ele não queria entender que a vida passara, que envelhecera, que já não havia mais apostas a serem feitas em busca de sua felicidade. Não! Jamais aceitaria descansar, internar-se em uma casa de saúde procurando melhor qualidade de vida para si. Nunca!

          Ocorreu, entretanto um fato inesperado. As duas filhas dela vieram a ele por parte da mãe. Ela estava doente e desejava ardentemente vê-lo.

          Conduzido pelas mãos das filhas dela, ele entrou com o coração estourando na residência onde ela viveu os últimos quarenta anos ao lado do marido, que também estava lá. Com o coração em pedaços encontrou-a debilitada. Andava com apoio. Pesava talvez cinquenta quilos, se tanto. 

          O médico fez a ele um triste relato. Nos últimos três anos a paciente fora submetida à radioterapia. O tratamento interrompera a neoplasia de mama. Contudo, em exames de rotina verificou-se recidiva da neoplasia com metástase pulmonar e de gânglios. Iniciado o tratamento com quimioterapia não houve resposta. O médico então informou à paciente e à família que não havia resposta, que a paciente tinha um prognostico reservado com expectativa de vida em torno de seis meses a um ano. Que o tratamento seria interrompido.

          A filha residente nos Estados Unidos da América do Norte não tinha condições de permanecer por mais tempo no Brasil. A outra filha tinha seus compromissos e nenhuma experiência em atendimento a pacientes graves. A paciente teria, mais dia menos dia, quadros de piora. A família precisava, em tais condições, montar uma estrutura de atendimento. 

          Ele ofereceu uma alternativa; levá-la a uma casa de repouso. 

          O marido dela e os familiares dele estavam todos contrariados. Não podiam aceitar que ela, depois de tantos anos, tivesse expressado a vontade de vê-lo. Agora que o viu, não desejavam que ele a levasse para uma casa de repouso.

          Triste, ele entrou na suíte de um hotel pensando em raptá-la.

          Em conspiração, as duas filhas organizaram todos os procedimentos e eles dois passaram juntos seus últimos dias em uma casa de repouso. Ele, agradecendo a Deus pela ventura de cuidar dela.


Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 23/11/2009
Reeditado em 01/10/2010
Código do texto: T1940385
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