A Virgem da Consolação e da Desesperança.

Era a manchete de todos os jornais da cidade:

“Polícia mata em confronto a chefona do tráfico”.

Abaixo havia uma fotografia de um corpo pequeno de onde mal se podiam distinguir as referências de gênero. Policiais posavam como predadores diante de um corpo deprimido apresentado como troféu; a imprensa servia o seu cardápio trágico com as anódinas reflexões sobre bem e mal, enquanto uns poucos moradores guardavam nos olhos a desesperança.

Depois de trinta e duas horas de viagem Maria chegava ao terminal rodoviário e deparava-se com a arquitetura da metrópole e o eloqüente distanciamento que impunha aos migrantes seqüestrados da indigência das regiões empobrecidas do país.

O Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa, se encarregaria do seu destino, que de imediato respondia pelo nome de Zeca, que em seu ofício de caminhoneiro, entre espaçadas viagens ao interior de Pernambuco e Rio foi costurando amizade e afeição por sua família miserável e, por fim, emaranhou o seu destino com Maria.

Depois da morte do pai de Maria a ida para o Rio mediante promessa de casamento pareceu uma benção e redenção pelos anos de dificuldades no agreste.

O terminal rodoviário com suas trilhas se abrindo em todas as direções prometia novidades a todo o momento. O destino foi o Morro da Formiga na Tijuca, onde um barraco com luz elétrica, água encanada e vaso sanitário tinha o valor de um palácio.

Pelo espaço de tempo que pode durar o fascínio pela novidade ela foi feliz, seus olhos impregnados de faltas e carências suportavam mansamente a insuficiência e a precariedade.

O vaso sanitário permitia tolerar as valas negras que recebiam a céu aberto todos os dejetos que tomariam os becos na primeira chuva.

A torneira de uma pia rústica ironizava a secura cotidiana dos reservatórios dos barracos, entretanto, a comparação dos dois momentos de sua vida dizia que aquela vida indigente era o prenuncio do paraíso, e enquanto durou o torpor do alívio dos seus últimos anos ela se sentiu feliz.

Zeca tinha em seu barraco a mulher dedicada que cuidava de seu bem estar e nada questionava de sua vida, permitia sua compulsão pelo jogo, sua diversão com as figuras mais enigmáticas do morro.

Ao mesmo tempo em que eram chamados para solucionar problemas corriqueiros eram impiedosos com pequenos desvios.

Um fato que ficou presente no imaginário de toda cidade foi um grupo de mais ou menos vinte adolescentes que recebeu tiros nas mãos por conta do furto de um rádio do carro de um comerciante local, o castigo foi à alternativa encontrada para não matar os seis responsáveis pela encomenda, furto e receptação do rádio, o mais velho não tinha mais que quinze anos.

Maria estava grávida de sete meses quando Zeca pegou o caminhão para uma de suas idas a Pernambuco, desta vez ele levava uma penca de quinquilharias baratas para distribuir aos familiares de Maria que resignadamente definhavam dentro daquela terra inóspita que os acolheu.

Como sempre partira numa sexta-feira à noite depois de passar um dia inteiro num silencioso descanso, separou dinheiro pelo período de sua ausência, repassou todas as recomendações e num semblante enigmático e tenso desceu o morro para pegar seu caminhão, foi à última vez que Maria viu o homem que acostumou a chamar de seu.

Os dois meses que se seguiram sem notícias de Zeca foram terríveis, com uma gravidez agitada num clima quente e a incerteza que habitava sua consciência quanto à inexplicável ausência; durante o período do seu desaparecimento recebeu de seus amigos uma quantia regular e contou com o apoio imediato das vizinhas para a sua realidade de grávida abandonada.

Quando Zezinho nasceu entre a alegria de gerar uma vida e as incertezas que o futuro guardava viu expressões fortes e emocionadas de todos que se aproximaram para conhecer o filho do Zeca.

Encontrava no menino a semelhança das feições que ia perdendo na ausência e na falta de razão para tal sumiço e despediam-se levando cada um, parte do enigma que cercava o desaparecimento de Zeca.

Foi em meio a esta tensão suspensa que o sarampo lhe tomou Zezinho, o brilho dos olhos e a esperança que um dia percebeu próxima de si.

As mães enterram suas almas, quando sepultam um filho, e por mais que se recomponham o que resta sempre recordará o que falta.

O tempo era uma grandeza insensível, o mundo era uma chaga aberta onde insetos perturbavam a paz e o seu presente era o estupor onde todas as reações e emoções encontravam-se paralisadas em dores novas e antigas; viver era remoer e revirar esta dor.

Seus olhos tornaram-se fluídos, buscando das coisas as dimensões inatingíveis e nas pessoas vestígios de realidade. Passou a viver do que era ofertado; a caridade dos pobres a alimentava, a retidão dos despossuídos a resguardava e a realidade passou a ser medida na porta das biroscas imundas cada vez mais mal freqüentadas.

Bebeu a desesperança e descobriu-se sem fundo para tanta dor, turvou as recordações, mas Zezinho passou a sorrir em cada moleque, vendeu e doou as memórias que seu corpo ainda conseguia conter, dos socos tornou carícia, nos cortes foi despertada de sua feminilidade esquecida. Seguia sem pressa a sua rota de redenção, mas Zezinho ainda teimava em sorrir em todo rosto e todo sonho.

Numa noite de sexta-feira sem bebida, sem homem, sem fumo e sem pó, Maria cruzou com Zezinho e minutos depois a polícia se encarregaria de tomá-lo mais uma vez.

Depois de ver, chamar e chorar, Maria se abandonou pela madrugada mais lúcida da sua vida. Passou a amparar e amar todos aqueles moleques que perdiam em cada esquina a face bendita do sonho; Zezinho vivia neles, como uma fagulha de desesperança, uma ausência que não enlouquecia em sua perda insuperável.

Emaranhou de tal forma seu destino nos moleques que não demonstrou qualquer emoção quando soube da morte de Zeca, numa rebelião num presídio na Bahia, após cinco anos de uma sentença de trinta por tráfico de drogas e assassinato de um policial federal.

Cuidava dos ferimentos dos seus anjos. Guardava armas, drogas e dinheiro; levava recados, pagava contas, levava e trazia comida e logo passou a participar da família como conselheira e confidente. No curto espaço entre a ascensão e a derrocada, as mortes cada vez mais presentes tornaram Maria figura importante dentro da situação.

Os meninos que haviam tomado tiros nas mãos morriam cada vez mais depressa, não tinham tempo de ganhar corpo, engrossar a voz e ver um sol que não sangrasse. A noite trazia a sede dos inimigos, a violência das lembranças e o consolo de algum menino para cuidar.

Mudou-se para o alto do morro para ficar próximo do local onde guardavam as armas e drogas, foi quando pela primeira vez usou uma arma para evitar a execução de um menino preso.

O sargento que efetuou a prisão perguntou:

“O que você tem para perder aí menor?”

Não houve tempo para resposta Maria apareceu do alto do beco despejando dois pentes completos de um fuzil enquanto corria para cima dos policiais.

A morte do sargento e do cabo em operação irregular e sem explicação ajudou a forjar o mito da mulher valente e desde então ela pega em armas para defender até o que já não lembra mais.

As forças de segurança precisavam de um inimigo contra quem lutar, a imprensa precisava de uma personagem para vender suas reportagens de folhetim e até um cineasta com postura de sociólogo tentou entrevistá-la para um documentário em parceria com uma instituição cubana.

Maria vivia perdida numa carona de caminhão, sonhava uma viagem de volta para a Bahia, quando o menino salvo do sargento guiou um oficial da PM até o barraco que Maria utilizava para dormir.

Morreu com doze tiros com o jovem amante e o informante que recebeu armas e drogas para ajudar a compor a cena do filme.

Após um diligente saque na cena do crime, as tropas de elite foram chamadas para resgatar um grupo que havia sido encurralado no alto do morro, ao menos era isto que afirmava a crônica policial rodrigueana.