Memórias de uns olhos azuis - 1ª parte

Glória, 1985.

Quando leio você passa a existir.

Amanhã completamos sete anos. Penso que já era tempo de estarmos casados. Mas ele, ele não. Nem sei o que pensa ele. Com o passar dos anos não sei se fiquei mais apaixonada ou se somente me acostumei com sua presença. Já não sei como seria sem ele, se tomaria as mesmas decisões, se viveria as mesmas aventuras. Estranho tentar imaginar algo que não aconteceu. Tenho medo de imaginar, como se pudesse ser melhor ou pior. É como quem compra uma bicicleta por um preço, e depois tem medo de saber que na outra loja a mesma bicicleta é bem mais barata.

Foi em Copacabana que nos conhecemos, na virada de ano de 1978. Estava em um apartamento alugado por Flavia – minha amiga – e seus amigos. Aceitei ao seu convite. Decidi me dar a chance de conhecer outras pessoas. Todos rindo e conversando e eu, bem, eu estava tentando esquecer um carinha que aprontou umas comigo. Foi quando senti uns olhos tocando a minha pele. Quando procurei o dono daquele olhar quente que parecia penetrar a pele vi um casal. Era ele. Não apenas ele. Henrique estava com a namorada. Uma mulher loira, de cabelos curtos e práticos. Senti uma coisa estranha. Mas eles não pareciam estar juntos. Não havia carinhos, olhares – até porque seu olhar estava em mim. Quando dez minutos para 1979 faltavam, descemos para a praia.

Henrique não estava acompanhado dela. Não descemos todos. Somente eu, Henrique e mais uns cinco amigos. Os outros, inclusive a loira de cabelos curtos, preferiram ficar na sacada assistindo ao espetáculo do alto. Talvez para continuarem do alto. Atravessamos a Atlântica e paramos em frente ao mar. As ondas podiam tocar nossos pés. Fechei os olhos. Queria sentir a sensação da nova vida. Do nascimento, da possibilidade, da esperança. Depois de toda a euforia da chegada de 1979, sentei na praia. Com a cabeça apoiada nos joelhos continuei olhando para o mar. Tão longe e tão firme. Não notei a presença de Henrique. Uma flor branca feita em um guardanapo ele me ofereceu, Feliz 1979!. Foi o início. Estava tão triste e tão frágil que, que eu não pude resistir.

Conversamos até o sol dar seu sinal de vida. A menina loira ao seu lado não era namorada – disse ele que era uma prima. Acreditei. Quis acreditar. Dizem que os ignorantes são mais felizes, não é? Vou esclarecer sua dúvida, não aconteceu nada. Nada além de nossa conversa. As seis horas nos despedimos com um beijo no rosto. Um suave beijo no rosto. Quando cheguei a casa, procurando a chave do portão no bolso da bermuda encontrei a flor. Estava escrito algo. Desenrolei o papel com cuidado, Posso te fazer feliz? Só pelos próximos cem réveillons. Desde então cada vez mais me apaixonei.

São sete anos. Todos comemorados na praia de Copacabana. Vinte e cinco de janeiro, sempre dormimos lá. Quando chove, levamos a barraca de camping. Creio que amanhã não há de chover. Vamos para lá, mas não me sinto como antes. Nos últimos anos realmente temos dormido. Henrique tem dormido. Eu não consigo. Os olhos não se fecham por mais que eu queira. Tudo bem, o mar me faz companhia. O som das ondas contra a areia parece conversar comigo. Parece ouvir meus pensamentos e dar-me as soluções. E amanhã não será diferente.

É aqui. O sebo que Flávia me indicou. Não é bonito. Muito pelo contrário, há livros e jornais e revistas amontoadas pelas estantes e por todos os lados do chão. Não há ninguém. Minto, há sim. Uma senhora com olhos tão brilhantes que envergonharam os meus. Ela usa chinelos de dedo com meias azuis, de lã. Um casaco marrom de casimira estampado com flores amarelas bem pequenas cobriam o corpo e seus finos braços. Devia contar seus sessenta anos de idade, Boa tarde, querida, posso ajudar? Fique a vontade. - Não fiquei a vontade. A senhora seguia meus passos e opinava a cerca de todos os livros que eu pusesse as mãos. Seus olhos eram brilhantes, mas pareciam ser tristes. A mão esquerda estava com duas alianças. Fosse viúva, talvez. Tantos livros. Um cheiro quase insuportável de papel velho. Quantas baratas por lá não havia!

De repente vi na estante um par de olhos azuis presos na capa de um livro. O livro era antigo, as páginas bem amareladas pelo tempo. Os olhos não. Estes eram vivos. Pareciam queimar a pele outra vez. As sombracelhas pretas, grossas contrastavam ao azul. Não pude conter a curiosidade. Comecei a folhear o livro. Estranho. A capa estava no sentido contrário. A primeira página na verdade, era a última página. Ah, sim. Tive que abrir o livro pelas costas. Foi quando vi a dedicatória, À mulher que ainda não amei!. - Nossa! A mulher que ainda não amei? Quem vai dedicar um livro a alguém que não existe? A alguém que se quer fez parte da vida, ou da criação do livro?, Vou levar este. Senhora?.

A senhora teve uma reação curiosa. De repente o brilho dos olhos desapareceu. Deu-me a sensação de não ter gostado de escolha. Custava 60 cruzeiros. Paguei e sai., Menina, aproveita o tempo que tens. Vive a vida. Não te prendas naquilo que sabes que não é o melhor. Mas não se iluda com o que te parecer ser o melhor! - Eu, hein?! Mulher doida. Só porque comprei um livro preciso ouvir conselhos? Muito esquisita. Confesso que me arrepiei com aquelas palavras. Será que ela é assim com a Flávia também? Coloquei o livro na bolsa e entrei no ônibus.

Continua...

Acire Assis
Enviado por Acire Assis em 28/11/2009
Reeditado em 22/12/2009
Código do texto: T1948880
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