[IN]sanidade II

Ele acorda assustado e se senta na cama. Olha para os lados, para cima, para baixo e sente alívio. Suas aflições. Aquelas coisas que lhe assustavam e rasgavam-lhe a pele em busca de retalhos de suas lembranças, todas se foram. Estão presentes apenas quando fecha os teus olhos. Quando vaga em seu outro mundo, onde era Servo e Senhor de seus próprios desejos e ambições. Onde há muito tempo podia pintar o céu com as cores que lhe agrada. Onde voava sem ter que olhar para traz. Sem ter algo a lhe prender e deixar de viver toda sua totalidade. Sem impor limites a capacidade que tem para amar.

O peito desnudo se encontra empapado de suor, seu corpo treme a cada vez que fecha teus olhos. É como se ela estivesse presente ainda por ali. Seu cheiro esta em toda parte do minúsculo quarto e ele quase jura que sente suas mãos a tocar-lhe o rosto na forma de leve brisa trazida pela pequena abertura da janela.

Calmamente ele sai de sua cama e seus pés mergulham no mundo frio que lhe apresenta o chão. Ele tateia a mão em meio ao véu da escuridão que a madrugada trouxe para decorar teu quarto até encontrar uma garrafa. Sente seu peso e crê que ainda possui algum líquido dentro. Sem hesitar, ele a leva de encontro à boca e sorve um longo gole. A vodka desce queimando, mas dá uma sensação boa, dá prazer. Então ele volta seus olhos em direção ao criado-mudo ao lado da cama e com a mesma habitual escuridão que se encontra, consegue achar um frasco de comprimidos. Ele raciocina que dois são o bastante para o efeito desejado. E que o resto da “viagem” será proporcionado pela “bebida que não deixa cheiro”. Por um momento e com a pouca luz que dispõem no quarto, ele se encara ao que sobrou de um espelho na parede. E logo a vertigem e o efeito das drogas que o alimentam dão forma a seus pensamentos.

Ele se vê caminhando por lugares desertos e nada é incomodo ao seu coração. A única coisa que consegue sentir é o vento tocando seu corpo.

Ele olha para trás, por cima do ombro esquerdo denunciam os demônios que deixou se alimentando em suas lembranças. É certo que ali ficaram não apenas as vivências ruins, mas as várias perdas de coisas boas ao trilhar este caminho. Deixaste muitas coisas para trás. Mas a espada se encontrava muito pesada para as mãos que a muito não tinham descanso. O fardo a carregar ficou cada vez mais pesado e o odor da podridão daqueles dias apenas trazia um ar nauseante, encobrindo o cheiro das belas flores que recebeste em uma manhã de primavera.

Onde estão os heróis que tanto clamou auxílio? Talvez ele nunca precisasse deles. E isto lhe faz percorrer na mente o pensamento de ele próprio ser o resultado da busca que procura.

Mas as palavras são cheias de significados, interpretações. Assim como os rabiscos e desenhos de uma criança. E aquilo lhe deixou mais confuso. Sua cabeça dói. Uma dor latejante e ele se vê novamente em seu quarto.

A garrafa escapa de seus dedos dormentes e cai ao chão se tornando várias partes de vidro envolto de um líquido de cheiro forte. Ele olha para a cena e imagina uma estrela explodindo e aos poucos se apagando. Com algum esforço vê seu reflexo em cada fragmento de vidro. Em alguns ele sorri, chora, fica surpreso, acanhado, com ar de ironia, com olhos de tristeza, luxúria, vingança. Um misto de expressões e emoções que lhe deixam em transe. Até que novamente em sua cabeça uma dor dilacerante lhe faz voltar ao mundo onde se encontra e ele observa que suas mãos estão banhadas em sangue enquanto brincava com os pedaços da velha garrafa.

Ele leva a palma das mãos de encontro ao seu rosto tingindo-o com a cor rubra da vida até que todo face fique coberta. O sangue após algum tempo seca e cria uma máscara que não ser permite ver seus olhos. Mas ele caminha normalmente com a naturalidade de quem nunca precisou usá-los para se locomover. Dirige-se a janela, e ao toque da luz da lua em seu corpo, ele se desfaz em pó, sobrando no quarto apenas uma máscara vermelha em meio a estilhaços de vidro. Eles reluzem um brilho mórbido, uma luz fria, e a máscara se faz parecer uma estranha forma de lua, em ascendência a uma cor de vermelho doentio.